No final deste mês irá estrear, nos Estados Unidos, a adaptação cinematográfica de Cloud Atlas, uma das principais apostas deste ano em termos de orçamentos milionários (as estimativas falam em 100 milhões de dólares), com direção dos irmãos Wachowski e um elenco que conta com Tom Hanks, Halle Berry e Hugo Weaving, entre outros. Seguindo uma linha recente de superproduções recriadas a partir da literatura, como as séries de O Senhor dos Anéis e Harry Potter, o filme partiu da obra homônima do escritor David Mitchell, publicada em 2004 (e ainda sem tradução para português), um livro que, embora não tenha levado a melhor nos principais prêmios que disputou, como o Man Booker Prize, acabou adquirindo, mesmo nesse curto período, status de cult.

O grande destaque de Cloud Atlas é sua estrutura formal: o livro é composto de seis histórias bem diferentes aninhadas umas dentro das outras. Para entender como isso foi feito por Mitchell, comece imaginando um primeiro volume aberto ao meio sobre uma mesa; sobre ele, coloque outros cincos livros, também abertos ao meio; depois feche tudo e comece sua leitura. O resultado final é que o leitor acompanha metade da primeira história, é interrompido, passa à segunda, é interrompido, e assim por diante. A história central, como se pode perceber nesse modelo imaginário, corre ininterruptamente, e vão se seguindo então os desfechos das demais.

Se fosse comentar cada uma das seis narrativas, estaria preso entre uma apresentação extensa e exaustiva, de um lado, e outra curta e superficial, por isso tomarei o caminho do meio e falarei apenas das duas primeiras. Creio que será o bastante para compreender o espírito do livro.

A história nº1 se chama o “Diário Pacífico de Adam Ewing”, e começa em algum momento em torno de 1850, quando Ewing está estacionado nas Ilhas Chatham, onde aguarda que sejam feitos reparos no navio em que viaja. Como vamos descobrindo aos poucos a partir de suas anotações, ele é um notário americano, que retorna da Austrália na guarda de alguns documentos de registro de propriedade, rumo a San Francisco.

Enquanto permanece nas Chatham, Ewing conhece a história dos moriori, povo nativo para os quais a violência seria tabu: qualquer homem que derramasse sangue de outro homem perderia sua mana – “sua honra, seu valor, sua reputação e sua alma”. Como recompensa por sua tradição pacífica, os moriori receberam a invasão e dominação dos vizinhos maori, que contaram com auxílio de emigrantes brancos. Com isso, embora não sejam panfletárias, as anotações de Ewing vão criando um panorama de intenções nesse universo colonial, em que pessoas honestas e pessoas inescrupulosas convivem e se apresentam independentemente de barreiras entre “civilizados” e “selvagens”.

Quando seu diário é interrompido, Ewing já se encontra a meio caminho do Havaí. Seu futuro, no entanto, é incerto. Ele é desprezado pelos oficiais do navio e precisa ser confinado em seus compartimentos por demonstrar sinais de uma doença exótica e, ao que tudo indica, letal.

A história nº2, “Cartas de Zedelghem”, salta para 1931 e assume a forma de uma troca de correspondências entre o músico Robert Frobisher e seu amigo e ex-amante Rufus Sixsmith. Na primeira carta, Frobisher relata como conseguiu, apenas com talento e bastante audácia, convencer um velho compositor e aristocrata a contratá-lo como amanuense. A parceria se revela frutífera, mas os dois rapidamente entram em desacordo quanto a questões tanto de autoridade criativa quanto de pura vaidade artística.

A situação de Frobisher ameaça se complicar a todo tempo e de inúmeras maneiras, pelo fato de que, em violação à aura de nobreza com que se introduziu no Château Zedelghem, ele não possui um tostão sequer em seu nome. Além disso, ele não guarda escrúpulos quanto a se envolver em pequenas artimanhas, como “aliviar” a biblioteca de seu anfitrião de algumas obras raras esquecidas.

Ao contrário da história anterior, que se voltava mais para uma descrição de acontecimentos e de atitudes alheias, as cartas de Frobisher têm um tom muito mais egocêntrico. Ele se orgulha de seu talento e da sua maneira livre de encarar a vida, e relata tudo com irreverência ao amigo Sixsmith. Quando as cartas são interrompidas pela narrativa seguinte, ele parece ter tudo em suas mãos, e o suspense aqui se estabelece em torno da seguinte questão: até onde ele conseguirá levar seus planos?

As demais histórias vão se encaixando em seguida, avançando sempre no tempo. A quarta delas já se passa ligeiramente além dos tempos atuais, e a sexta ocorre em um futuro indeterminado, possivelmente bastante longínquo (vale lembrar que o livro concorreu também a prêmios de ficção científica).

Todas as seis partes do livro têm pelo menos uma ligação simples e direta, sendo cada uma delas em algum momento descoberta pelo protagonista da história subsequente. O diário de Ewing, por exemplo, é encontrado e lido por Frobisher. Existem, no entanto, muitas outras maneiras de enxergar a conexão entre as histórias, desde as mais realistas até as mais sutis. Intermináveis debates poderiam ser levados em torno dessa questão, e entendo que essa seja uma das fontes do aspecto cult do livro: existe sempre algo sedutor em um mistério que não pode ser resolvido definitivamente (para outro exemplo recente, veja a discussão em torno de O sentido de um fim).

É importante destacar também a maneira como Mitchell recria, para cada uma das histórias, um estilo e um formato próprio. Um personagem de nossa época obviamente fala e se comporta diferentemente de um Adam Ewing, e isso o autor consegue representar muito bem ao longo de todo o livro. Mesmo as partes futuristas recebem transformações apropriadas na linguagem, que acompanham de forma natural as evoluções do enredo. Por outro lado, a voz de Mitchell, que se percebe evidentemente em todas as etapas, pode se tornar um pouco exaustiva em seu esforço de colocar algo de inusitado em cada uma de suas sentenças.

É inegável que Cloud Atlas é uma obra capaz de prender a atenção dos leitores, mesmerizados que ficamos em tentar acompanhar o ritmo constante de novos recursos empregados por Mitchell, sendo sempre remetidos ao início de uma nova história no momento em que estávamos para nos acomodar. Poderia-se até perguntar se cada uma das histórias se sustentaria de maneira independente – o que seria totalmente injusto. Julgado em seu conjunto, como deve ser, com todos os seus obstáculos e desafios próprios, Cloud Atlas é digno de toda admiração por alcançar uma sinfonia que atravessa os limites entre os cenários.

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Para aqueles que quiserem se arriscar a alguns spoilers, segue o trailer do filme, que tem previsão de estreia no Brasil para 28 de dezembro, com o (abominável) título de A viagem.