A história dos Estados Unidos guardou um destino muito interessante para as duas grandes regiões que digladiaram na Guerra de Secessão, o Sul e o Norte. O “Norte manufatureiro”, como o chamou Leo Huberman, testemunhou um desenvolvimento urbano e industrial muito mais acentuado que o Sul – o “Sul agrícola”, ainda segundo Huberman -, que manteve a tradição rural – e todos os aspectos que a caracterizavam – por mais tempo, mesmo após ter sido derrotado em meados do século XIX. A derrota bélica não apagou a longa sedimentação de sentimentos, valores, costumes e modos de vida dos sujeitos que habitavam o Sul, cuja resistência em assumir o destino pretendido pelo Norte afetou também, em ampla medida, a literatura norte-americana.

Tennessee Williams (1911-1983) foi um dos escritores que lastreou sua literatura, ora conflituosa, ora harmonicamente, no “velho Sul”. Tendo nascido no Mississipi e perambulado por outros estados do sul, tais como a Louisiana e o estado cujo nome adotou para si próprio, Tennessee, o escritor conviveu intensamente com o ambiente sulista e com o mundo que existia lá. A grande presença de negros, o ritmo de vida ainda não tão acelerado quanto o do norte industrial, a permanência das tradições rurais mais antigas, a influência francesa oriunda da colonização dessa região e da vinda de escravos e criollos da antiga colônia haitiana e assim por diante. Todo esse universo foi onde suas raízes – e, consequentemente, as de sua literatura – se deitaram e de onde se nutriram.

Os contos de Tennessee Williams estão repletos de personagens boêmios, artistas decadentes, vagabundos, poetas, homossexuais e toda a sorte de pobres-diabos que, por não se enquadrarem a padrões de conduta, passaram a viver nas franjas da sociedade, levando uma vida que se desenrola nos subterrâneos sociais, principalmente em bares, pensões, casas precárias, tavernas ou mesmo on the road. Tal galeria de personagens traz à tona uma interessante gama de conflitos, que Tennessee explora com muito erotismo e com aquela verve tremenda que caracteriza as hipérboles dramáticas.

Alguns contos possibilitam, minimamente, entrever a expressividade, o estilo e as questões recorrentes nas histórias de Tennessee Williams. Tomemos como exemplo “Dois na gandaia”. A história foca em dois personagens, Billy e Cora, ele um escritor homossexual que só trabalha o necessário para se manter na vida boêmia; ela uma boêmia por convicção, flanando pelos bares em busca de aventuras amorosas e boa vida. Os dois são a encarnação da vida desregrada dos bares de Nova Orleans e do Memphis – lugares onde se passam várias das histórias de Tennessee -, tendo seu cotidiano todo girando em torno da vida errante e das experiências sexuais que buscam constantemente. Tennessee Williams faz deles protagonistas carismáticos, personagens aos quais o leitor se afeiçoa e perdoa as irresponsabilidades. O arranjo afetivo ao qual eles chegam ao fim da história não é, em nada, convencional.

O conto “A noite do iguana” é, nesse sentido, muito expressivo. Um dos emblemáticos personagens é a Srta. Edith Jelkes, “(…) que havia ensinado arte numa escola episcopal para moças no Mississipi até sofrer uma crise nervosa que a levara a trocar o magistério por uma vida de vagabundagem” (p. 290). A breve apresentação dessa personagem é suficiente para que conheçamos um dos tipos comuns nas histórias de Tennessee Williams: a vida modelar – talvez até recatada, como sugere a rigidez das escolas religiosas -, resultou em uma crise nervosa, pois, a julgar pelos demais contos do autor, ela é por demais rígida e castradora. Por outro lado, a vagabundagem, a boêmia e o desregramento sexual são possibilidades de existência muito mais satisfatórias e felizes.

Para dar continuidade à história de “A noite do iguana”, a Srta. Jelkes vai a Acapulco onde, numa pousada de nome Costa Verde, encontra dois irmãos que cultivam um peculiar costume mexicano, o de deixar um iguana amarrado durante algum tempo antes de comê-lo. Ela se compadece da pequena criatura que se debate e vai ao quarto dos dois irmãos para exigir a soltura do réptil, ao passo que se envolve num dos clássicos momentos eróticos das histórias de Tennessee Williams, no qual encontra o êxtase libidinoso como libertação existencial, como uma experiência transcendental. Ao fim do conto, após uma tempestade, o iguana, como que num passe de mágica, havia desaparecido.

Os exemplos que poderiam ser arrolados aqui para discutir as inúmeras questões e elementos das histórias de Williams é vastíssimo. Os contos completos contabilizam quase 700 páginas! Seus dramas parecem mostrar os sujeitos renegados à marginalidade existencial e social, que incorporam o drama como algo particular, premente na constituição de seu próprio ser. Eles digladiam-se com seus instintos sexuais – os quais são, a um tempo, uma espécie de fardo e uma experiência extática – numa ânsia de tornar a brevidade da vida mais longa por meio da intensidade constante. Raymond Williams, na obra Tragédia moderna, parece sintetizar a expressividade da obra de Tennessee Williams nesse sentido:

“[…] as suas personagens são seres isolados que desejam, comem e lutam a sós, que lutam febrilmente com as energias primárias de amor e morte. Eles são, da forma mais satisfatória, animais; o resto é um revestimento de humanidade, e é destrutivo. É na sua consciência, em seus ideais, em seus sonhos, em suas próprias ilusões que eles se perdem, tornando-se sonâmbulos patético. A condição humana é trágica por causa da inserção do espírito na feroz e em si mesmo trágica luta animalesca de sexo e morte.” (p. 159)

WILLIAMS, Raymond. Tragédia moderna.Tradução de Betina Bischof. São Paulo: Cosac Naify, 2002.

WILLIAMS, Tennessee. 49 contos de Tennessee Williams. Tradução de Alexandre Hubner, Jorio Dauster, Fernando de Castro Ferro e Sônia Moreira. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

Listo abaixo os contos reunidos na coletânea da editora Companhia das Letras referenciada nessa resenha:

Prefácio – O homem na poltrona estofada por Tennessee Williams (1960)
Introdução por Gore Vidal (1985)
1 – A vingança de Nitócris (1928)
2 – A bolsa aljofarada de uma senhora (1930)
3 – Alguma coisa de Tolstói (1930-1931)
4 – Negão, um idílio no Mississipi (1931-1932)
5 – A entonação de um pé que se aproxima (1935)
6 – Vinte e sete carretas cheias de algodão (1935, publicado em 1936)
7 – Areia (1936)
8 – Parada de dez minutos (1936)
9 – Uma maçã de presente (1936)
10 – O campo das crianças azuis (1937, publicado em 1939)
11 – Em memória de uma aristocrata (por volta de 1940)
12 – O quarto escuro (por volta de 1940)
13 – Os mistérios de Joy Rio (1941, publicado em 1954)
14 – Retrato de uma moça em vidro (1943, publicado em 1948)
15 – O anjo na lucarna (1943, publicado em 1948)
16 – Auriflama (1944, publicado em 1974)
17 – Um ramo de videira (1944, publicado em 1954)
18 – A maldição (1945)
19 – Da maior importância (1945)
20 – O maneta (1945, publicado em 1948)
21 – O interlúdio (1945)
22 – Casa de veraneio (1945, publicado em 1980)
23 – O desejo e o massagista negro (1946, publicado em 1948)
24 – Tem alguma coisa nele (1946)
25 – O pássaro amarelo (1947)
26 – A noite do iguana (1948)
27 – O poeta (1948)
28 – Crônica de um desaparecimento (1948)
29 – Rubio y Morena (1948)
30 – A semelhança entre um estojo de violino e um ataúde (1949, publicado em 1950)
31 – Dois na gandaia (1951-1952, publicado em 1954)
32 – Um passatempo de verão (1951-1952)
33 – Boa nova para a viúva Holly (1953)
34 – Balas sortidas (1953, publicado em 1954)
35 – O homem vem caminho acima (1953, publicado em 1959)
36 – O colchão junto ao canteiro de tomates (1953, publicado em 1954)
37 – O reino da Terra (1954)
38 – “Grand” (1964)
39 – A velha casa de mamãe (1965)
40 – Andanças de um cavaleiro (1965, publicado em 1966)
41 – Um recluso e sua hóspede (1970)
42 – Feliz 10 de agosto (1970, publicado em 1971)
43 – O inventário de Fontana Bella (1972, publicado 1973)
44 – Senhorita Coynte de Greene (1972, publicado em 1973)
45 – Sabbatha e a solidão (1973)
46 – Completa (1973, publicado em 1974)
47 – Das wasser ist kalt (1973-1979, publicado em 1982)
48 – Mamãe framboesia (1977)
49 – O frangote matador e a boneca enrustida (1977, publicado em 1978)