Apesar de serem muito similares em certos aspectos, textos escritos para ser um romance e uma peça de teatro são bastante distintos. O formato, o espaço e toda a organização e reflexão que envolve a concepção desses trabalhos, pensando no universo circunstancial e na própria tradição que envolve cada um desses gêneros, faz com que a apresentação e, consequentemente, a fruição tenham de ser também distintas. Foi buscando ter em mente constantemente essas peculiaridades que li A moratória, drama escrito por Jorge Andrade (1922-1984).

O dramaturgo ficou conhecido por retratar o ocaso das grandes fazendas cafeeiras e a situação de xeque em que se encontrava o antigo universo dos barões do café e todos os elementos que estavam nele ancorados, desde as tradições e as práticas campesinas até os valores, a visão de mundo, os costumes etc. Precisamente perante o drama dessa transição que A moratória sobe alto nas notas históricas e emblemáticas.

A peça é composta de três atos, sendo que, em cada um deles, a ação se desenrola em dois planos. Esses planos não coincidem no tempo, cada um deles se passa em um momento diferente, que é explicitado no início de cada ato. A localização cronológica mais geral mostra que a história acontece nos anos 1930, quando, sob o governo de Getúlio Vargas, a economia cafeeira se debatia com os efeitos recessivos da crise de 1929 nos Estados Unidos.

Há somente seis personagens ao longo de toda a peça. Joaquim é o representante daquele antigo mundo dos fazendeiros do café, não fora um latifundiário, mas gozou em larga medida dos benefícios da economia cafeeira e da posse de sua propriedade. Helena, sua mulher, é uma matrona compreensiva, que procura aplacar as características ira e brios do marido em relação aos filhos e à situação precária pela qual passam. Lucília é a filha do casal, uma dedicada moça que nos é apresentada primeiramente costurando para fora, para ajudar nos gastos da família.

O elenco ainda é complementado por Marcelo, segundo filho do casal que se nega a enquadrar nas novas condições de trabalho, num frigorífico; Olímpio, um advogado que se enamora de Lucília; e a tia Elvira, que faz as vezes de elemento de transição, já que não veio a encontrar a ruína com os novos tempos, sendo, inclusive, a fonte de empréstimos da qual a família de Joaquim volta e meia precisa.

A alternância entre os planos dota a peça de um dinamismo muito interessante: de um a outro, cabe ao leitor preencher as lacunas com as plausíveis hipóteses, que vão sendo desfiadas e confirmadas ao longo da evolução da trama. Embora separadas pelo tempo, elas estão unidas no espaço do palco, situação que Jorge Andrade utiliza com talento, fazendo os planos dialogarem constantemente, preenchendo-se de sentido e expressividade a cada nova fala cruzada.

Ato a ato, plano a plano, o drama toma forma. Do antigo arranjo sócio-histórico – no qual Joaquim e sua família gozavam de autonomia e de status – até o atual estado de cerco em que se encontram – tendo que viver de parcos rendimentos, dependendo do trabalho dos filhos e dos empréstimos de Elvira para sobreviver – há todo um processo histórico de mudanças econômicas e políticas, em que a sociedade brasileira, tanto as elites quanto as classes médias e baixas, passou por mudanças sensíveis.

A angústia da espera marca toda a peça: a continuidade da posse – a possibilidade de voltar a ter o antigo status e segurança de ser “patrão de si próprio” – depende da aprovação da moratória por parte do governo. Joaquim viveu toda a sua vida sem receber ordens de ninguém, sem ter sua honra maculada por desconfiança alguma, mas encontra-se agora sendo obrigado a engolir seu antigo orgulho. Helena, sua mulher, não tem mais a energia para ser flexível quanto aos humores do marido, se entregando a uma fé exacerbada numa decisão favorável por parte do governo. Lucília e Marcelo se vêem às voltas com as incertezas de seu futuro, afinal encontram-se com um pé em cada mundo: um no antigo modo de vida que aprenderam a conhecer e o outro naquele mundo de que não gostam mas no qual sabem viver com mais familiaridade que os pais.

Aliando conflitos sociais com dramas individuais e fazendo reverberar a historicidade na intimidade da vida cotidiana, Jorge Andrade retrata com apurado poder de síntese e primoroso talento toda uma época de transição. Utilizando-se dos recursos que a linguagem teatral possibilita, ele constrói toda uma abordagem histórica, uma leitura de seu tempo, trazendo à tona a própria matéria-prima da realidade através dos artifícios da ficção e do drama.