Terrorismo velado
Batendo na mesma tecla, o longa de Ben Affleck é uma exaltação ao heroísmo americano, embora tente negá-lo durante a projeção
É natural que, quando um ator conceituado de Hollywood decida se colocar atrás das câmeras, todas as atenções se voltem para ele. Isso significa maior visibilidade na imprensa e prêmios acumulados. Me refiro ao Globo de Ouro e ao Oscar, os dois prêmios mais insignificantes – e, paradoxalmente, mais influentes – do cinema atual. Ainda mais se o tal diretor seguir a cartilha de filmes ufanistas. Aconteceu com Clint Eastwood, e está acontecendo com Ben Affleck.
Se a comparação pode soar exagerada, basta pensar nos filmes políticos que Eastwood fez, exaltando sua pátria e pintando os inimigos dos Estados Unidos tais como os bárbaros de antigamente. Mas longe de mim comparar a magnitude da obra de Clint, muito além da politicagem, com a de Affleck, que se resume a poucos filmes de sucesso como ator e menos ainda como diretor – sua estreia foi como roteirista de Gênio Indomável, ao lado de Matt Damon.
Agora, seguindo os passos do mentor, Affleck se debruça sobre uma história real, tipicamente estadunidense. O contexto histórico ronda em torno do papel diplomático dos EUA ao depor o presidente iraniano Mohammad Mosadeqq e substituí-lo pelo xá Reza Pahlevi que, ostensivo e ganancioso, levou o país à miséria. Uma grave crise política estoura quando o então presidente foge e recebe refúgio nos próprios EUA. Em 1979, a maioria da população se rebela contra esse ato e decide invadir a embaixada norte-americana, fazendo dos funcionários reféns até que devolvessem o xá ao Irã para ser julgado pela população.
É aí que entra o agente da CIA, Tony Mendez (interpretado pelo próprio Affleck), contratado para resgatar seis pessoas que escapam da embaixada e encontram refúgio na casa do embaixador canadense Ken Taylor. A obrigação de Tony é inventar um pretexto convincente para pousar no país e salvar a vida dessas pessoas, que a cada dia correm o risco de serem identificadas pelos líderes rebeldes. A única “melhor má ideia” que Mendez tem é a de falsificar a produção de um filme, na qual os fugitivos são a equipe que busca uma locação no “exótico Oriente Médio”. O nome do filme (e da operação): Argo, uma paródia de Star Wars.
Embora o roteiro de Chris Terrio seja previsível e bitolado, Affleck se sai admiravelmente bem. Com bastante estilo, o diretor mostra confiança ao intercalar cenas de tensão no Irã com as cenas muito mais leves e divertidas sobre os preparativos para o “filme” em Los Angeles. Telejornais da época e pedaços de discursos do então presidente John Carter dão os elementos de veracidade à história. Criando momentos de tensão apropriados – como quando a Kombi com os fugitivos deve atravessar uma manifestação – o diretor ainda consegue estabelecer o pano de fundo para cada personagem, ainda que a história não gire em torno das vítimas.
A atmosfera dos anos 70 é bem trabalhada por Rodrigo Prieto, que emprega a fotografia diferenciando o calor amarelado dos EUA e a frieza azulada do Irã. A trilha sonora de Alexander Desplat também merece destaque, intercalando clássicos de rock que foram famosos à época e cantos típicos orientais. O que mais me tenha chamado a atenção talvez tenha sido o design de som, que empregou toda sua força ao elevar o coro dos rebeldes iranianos a uma escala inimaginável, como se aquela multidão fosse infinitamente maior do que a real.
Apesar de contrapor piada e tensão com eficiência, Argo falha em seu terceiro ato, a partir do momento em que Affleck retrata Mendez como o grande heroi salvador da pátria. Desobedecendo as ordens de abandonar o plano, o agente segue adiante. É então que a película cai na velha armadilha de expor uma tensão desnecessária até o último limite, criando obstáculos que impedem o herói de cumprir sua missão – mesmo quando sabemos de antemão que vai dar tudo certo. Ao final, rolando os créditos, Affleck sente novamente a necessidade de ressaltar a veracidade da história, comparando fotos documentais das vítimas, dos rebeldes, de cenas marcantes do conflito e dos fugitivos.
É bom o suficiente para a Academia.
“Bom o suficiente para a Academia” – infelizmente isso é o que tem sido acompanhar os filmes que estão entre os indicados. Parabéns pela resenha, e por lembrar como Hollywood se excita ao ver um de seus astros mudando de papel: “Aconteceu com Clint Eastwood, e está acontecendo com Ben Affleck.” – também aconteceu com Warren Betty (Reds), Robert Redford (Gente como a gente) e até Kevin Costner (Dança com Lobos).
Pobre Academia, tão tola…
Exatamente, Vinicius! Obrigada pelo comentário 🙂
Ei, “Reds”, “Gente como a Gente” e “Dança com Lobos” são ótimos filmes! Também sou da opinião de que “Ordinary People” não deveria ter ganho o Oscar naquele ano, mas foi o filme que desfez o estrago causado por “Um Estranho no Ninho” – uma grande conquista, visto que o assunto era tabu – vide que “Bigger Than Life”, de Nicholas Ray, só começou a ser bem avaliado décadas depois de lançado, assim como “Shock Corridor”, de Samuel Fuller, que, apesar de ser uma denúncia contra o sistema de saúde voltado para pacientes com problemas mentais, acabou criando uma percepção semelhante a de “Um Estranho no Ninho”. Como diria Upton Sinclair sobre “The Jungle” e a criação do FDA: “quis atingi-los no coração e acertei no estômago”.
E Volcof, naquele ano de “Dança com Lobos”, tinha “Awakenings”, “Do Outro Lado da Vida”, “O Poderoso Chefão – Parte III” e “Os Bons Companheiros”. Pelo revisionismo e pelo feito de criar um filme numa dimensão semelhante a “Portal do Paraíso”, abrindo caminho para “O Último dos Moicanos”, de Michael Mann, não pensaria duas vezes na hora de escolher “Dança com Lobos”.
Acho que vc deve ter toda a razão ao falar de Affleck, ele sempre foi superestimado em todos os sentidos. Mas colocar na mesma categoria Clint Eastwood me pareceu meio exagerado. Até porque não sei onde estão esses filmes ufanistas dele…
Obrigada pelo comentário, Marcelo! Os filmes americanóides do Clint são bem menos explícitos, mas eles existem. Cartas de Iwo Jima e Invictus são os dois primeiros que me vêm à cabeça. Mas a comparação não foi no sentido de “bom x ruim”, inclusive porque acho Clint o máximo 😉
“Cartas de Iwo Jima” e “Invictus” são filmes americanoides?! Por favor, me explique.
Perdão,mas se tem uma coisa que Cartas de iwo jima não é é ufanista… Até porque esse filme precisa ser entendido no conjunto com A conquista da honra. E tem uma outra coisa que considero importante perceber quando vamos fazer uma crítica sobre um produto tão enraizado como é o cinema (embora essa discussão possa ser longa também), se os americanos produzem uma história “americana”, nós devemos saber entender o que pode existir de universal nessa história. Vc pode dizer: cartas é ufanista porque mostra a inferioridade japonesa diante do exército americano. Mas essa leitura me parece a mais imediata sobre o filme, até porque foi historicamente verdadeira, no fim das contas; e será que não mostra o quanto aqueles vilões construídos pelos americanos para convencer seu povo a entrar na luta, não era tão frágil e humano como esses mesmos americanos mostrados em A conquista da honra? Antes de tudo, cartas é um filme bem antibelicoso, mostrando o quanto a guerra é só uma desculpa dos poderosos para massacrar quem estiver no caminho de seus interesses. Ou, para dar um exemplo até melhor, Gran Torino, onde o universalismo de valores como o respeito, o caráter, amizade, prevalece sobre as diferenças mais evidentes entre as culturas… Por isso, não estou nem tentando defender Ben Affleck, com quem realmente não simpatizo, mas acho que a comparação foi meio equivocada.
Só consigo pensar em dois filmes ufanistas do Eastwood, na verdade: “Firefox” e “O Destemido Senhor da Guerra”. Talvez “Cowboys do Espaço”, mas não vejo ali uma dimensão patriótica.
Contudo, discordo da leitura de uma dimensão pretensamente ufanista em “Argo”. Na verdade, o próprio filme mostra que é graças aos EUA que 1) Mossadegh é derrubado e Pahlevi, que o filme não esconde que era um ditador, é colocado no governo ; e 2) a crise do sequestro na Embaixada é provocada pelo xá ser recebido para tratamento nos EUA. Ou seja, Affleck mostra que o próprio país é responsável pelos problemas causados tanto aos iranianos quanto aos seus cidadãos no exterior. Na parte em que Mendez (Affleck) resolve seguir o plano de forma independente, é possível ler uma crítica à leniência e estupidez das instituições norte-americanas – mesmo porque, a missão que alegam que ocorrerá para o resgate dos reféns, como todos nós sabemos, falhou miseravelmente, tendo custado a presidência de Carter. E aquela cena no aeroporto, em que um dos americanos, posando de cinematógrafo (?), explica pros soldados cena por cena os storyboards? O cara tá mostrando que o roteiro do filme fictício reconhece a realidade iraniana pré-Revolução – e pode ser lida, pelo final, como um espelho da situação da personagem Mendez, que está passando por uma crise conjugal. Encerrando minha digressão, rs, quero dizer que vi na tela um filme crítico mas divertido, e que soube dosar as camadas do filme. That’s all.
Brigada pelo comentário, Bruce! Mas é exatamente isso que os Estados Unidos faz tão bem: eles fingem que criticam o próprio modelo e manipulam a história para mostrar como alguns deles são heróis. Lembra de O Último Samurai? Pois é. Não consegui ver relação nenhuma com o roteiro fictício e a relação de Mendez, achei um pouco forçar a barra. Mas enfim, é uma questão de opinião 😉
“O Último Samurai” já começa falho por se apropriar de uma história real que envolveu um oficial francês. “Lágrimas do Sol” é um outro filme que poderia ser visto dessa forma, mas gera no espectador uma dúvida: quando é permitido envolver-se em conflitos internacionais? “Hotel Ruanda” responde: ninguém quer se envolver em conflitos que não tragam algum “lucro” para as potências envolvidas. No entanto, qual a diferença de filmes como esse para as primeiras adaptações de “As Quatro Plumas” e “O Americano Tranquilo”? Eles expõem a manipulação das Grandes Potências sobre o chamado Terceiro Mundo. Você pode dizer: ah, mas um americano sempre acaba terminando salvando o mundo nesses filmes. Bom, eles estão botando dinheiro numa história que nem seria contada se dependesse do cinema de alguns países, logo, tê-los como mocinhos é a coisa mais trivial que esperaríamos que acontecesse. No entanto, há um progresso nessa exposição do reconhecimento da falha da política externa norte-americana, seja intervindo diretamente ou criando a situação perfeita para a ascensão de uma ditadura de direita.
Sobre o roteiro em três camadas (a história fictícia, a história dos iranianos e a história de Méndez), sugiro que você reveja a cena final em que um dos americanos explica frame por frame, com base no storyboard, de que se trata a história.
É um grande filme, e eu acho que o interesse gerado no assunto discutido, mas para ser honesto, eu sinto um pouco elitista, porque nem todo mundo entende. Definitivamente vale a pena assistir Argo é um filme contou com inteligência, bom ritmo e um elenco muito atraente.