Se fosse descrever a subjetividade, uma pessoa poderia evocar a imagem das conhecidas caixinhas mentais — as simplórias caixinhas a partir das quais tem início o processo de filtragem e catalogação da quantidade absurda de informações recebidas diariamente. Não é como se todas as coisas fossem ganhar, rápida e irrefletidamente, uma etiqueta única, peremptória e imperecível. Esta é uma representação fácil e pueril de uma maneira inicial de dar ordem ao caos. Digamos que você leia muito e precise encontrar um método — anterior a qualquer tentativa séria de classificação, portanto um exercício quase inconsciente — para selecionar e arquivar a ficção. Não interessa se você saca um pouco de teoria ou se ignora tudo isso. A tarefa é, nesse caso, inteiramente pessoal. Dessa forma, como qualquer leitor que tenha saído em busca de recursos próprios, eu encontrei os meus. À margem de teorias reconhecidas e sem nenhuma obrigação com a exatidão ou a formalidade, tenho uma maneira bizarra de classificar as leituras marcantes. Eis minha idiossincrasia: o remanejamento dos adjetivos Perturbador e Frustrante. Aí estão duas caixinhas muito úteis.

Quer dizer, eu vou me referir a definições de forma e conteúdo, ao mesmo tempo separando um do outro e aceitando sua interdependência. Críticos divergiriam e alguns teriam uma síncope, mas vamos lá. Não há nenhuma obrigação com uma verdade universal aqui — esta verdade, ao contrário, é individual. Há várias razões pelas quais certas leituras podem ser consideradas Perturbadoras. É possível que a ficção contenha um elemento macabro ao gosto de Poe, algo inquietante ao estilo de Bulgakóv ou uma sacada quase nonsense como só Bolaño foi capaz de elaborar. A Perturbação é subjetiva, e tachar um enredo de Perturbador diz muito mais sobre mim do que sobre ele. A narrativa de A. Gordon Pym, O Mestre e Margarida e 2666 não serão incômodos aos olhos de todos os leitores. Para mim, bom, os três pareceram realmente arrepiantes, de modo que foram para a respectiva caixinha, e pronto. A leitura Perturbadora é necessariamente a mais impactante: incomoda, cutuca medos e angústias, embaralha uma porção de conceitos e subverte algumas certezas. Estou falando, é claro, do conteúdo.

Definir uma ficção como Frustrante é mais complexo e um pouquinho menos pessoal. Algo na estrutura, no estilo, nos recursos, na linguagem, no ritmo e (especialmente) na própria organização não pareceu adequado. É uma questão de forma, mas não necessariamente um deslize ou um erro. Ser Frustrante não significa ser ruim — esses conceitos, aliás, são coisas totalmente distintas para mim. Raramente paro para classificar um livro com defeitos óbvios na sua construção; não é o caso, portanto, de evocar imperfeições. Digamos que uma narrativa Frustrante tem o poder de potencializar qualquer elemento Perturbador do enredo. Uma narrativa Frustrante é apenas uma narrativa que não foi destrinchada. Uma narrativa Frustrante é aquela em que as escolhas do autor não estão, de início, muito claras. Sartoris, Cemitério de Pianos e Amor, de novo são frustrantes.

Existem obras Frustrantes e existem obras Perturbadoras. E existem obras Frustrantes e Perturbadoras. É raro, ok, mas acontece. A estrutura não é convencional, a solução não é exatamente a que adotaríamos, a forma e o conteúdo parecem não dialogar direito — enfim, há uma quantidade enorme de fatores que, na desordem que é a minha consciência, fazem um livro receber as duas etiquetas.

(Beckett, que já me fez revirar muita pedra de gelo no fundo de copo de uísque, se encaixa nessa dupla categoria. Mas aí já é assunto para outro post.)

O escritor que me deu a maior rasteira foi John Updike. Quem pensou na famosa tetralogia — porque ali há, de fato, muito pano pra manga — errou feio. Não, minha inquietação não tem nada a ver com o Coelho. Meu problema com Updike se resume ao seu conto intitulado “Uma outra vida”, incluído em uma coletânea de mesmo nome publicada pela Companhia das Letras em 1996 (a edição está esgotada; quem quiser encontrá-la deve procurar nos sites agregadores de sebos).

Não posso reproduzir o conto sem autorização, de modo que me limito a dar um panorama geral do enredo. Acontece o seguinte: um casal norte-americano nota que seus conhecidos estão fazendo escolhas estranhas e impulsivas. A turma toda está na meia-idade, o que pode justificar as excentricidades e as alterações bruscas em itinerários que antes pareciam imutáveis. Dando vazão a um ímpeto semelhante, o tal casal — ele e ela na casa dos cinquenta — decide visitar amigos que haviam se mudado para Norfolk, Inglaterra. Carter, o marido, é o personagem central desta história; é em sua mente que o narrador e o leitor penetram devagar. Uma vez instalado em Norfolk, Carter vive situações tensas e desconfortáveis — duas delas algo sobrenaturais — que mexem profundamente com suas crenças. A ordem dos fatos parece gratuita, improvável, descuidada; os próprios eventos carecem de um significado imediato, embora estejam, ainda que de maneira sutil, fazendo referência a algo mais obscuro. Após a sugestão de que a incoerente cadeia de acasos modificou a essência e as perspectivas de Carter, o conto se encerra bruscamente. É possível que, com a devida concentração, o leitor consiga visualizar Updike rindo com discrição.

Alguém mais apressado poderia tachar o conto de impenetrável e deixar por isso mesmo. O fato é que as coisas, a partir daí, não são tão simples. O crítico James Wood — que normalmente reverencia o estilo de Updike — já salientou que a ficção não é “um bloco sólido”. Em outras palavras, cabe a cada leitor a tarefa recolher os caquinhos e reuni-los em um formato único.

Podemos concordar que a ficção Perturbadora e Frustrante encontra diferentes ecos em cada leitor. Rotular e destrinchar são etapas diferentes, e é óbvio que nem sempre haverá concordância. Enfim, no caso de “Uma outra vida”. O que foi aquilo? Não é como se todas as histórias tivessem uma moral definida e específica — deixem isso para as fábulas de Esopo. Não era o caso, ainda, de descobrir um simbolismo particularmente intrigante, ou não era apenas isso. Era mais a necessidade de, antes de tudo, estabelecer um nexo para a cadeia de acontecimentos, espremer daquilo uma explicação e ter a convicção de que determinada cena não estava ali de forma aleatória ou gratuita, como um mero floreio narrativo completamente acessório. É bastante óbvio o fato de que o conto não permite excessos; o bom do conto é o que ele oculta e sugere, o que não foi dito mas está subentendido.

“Uma outra vida” não é, de fato, o único conto incômodo que já li. Qualquer narrativa curta pode ser inquietante se se propuser a isso, ou mesmo se não se propuser. Flannery O’Connor, Primo Levi, Philip Roth, Luigi Pirandello, Virginia Woolf e Horacio Quiroga, para citar apenas uns poucos e bons, escreveram histórias Perturbadoras que estão além de uma classificação apressada e óbvia. Na coletânea intitulada A primeira pessoa e outros contos, Ali Smith provou ser, tanto quanto John Updike, uma contista cujo poder de me confundir e impressionar é enorme. É numa das histórias deste livro, aliás, que Ali Smith enumera algumas analogias e demarcações que certos escritores empregaram a fim de descrever o conto (a edição é da Companhia das Letras, a tradução é de Caetano Galindo e os grifos são meus):

Franz Kafka diz que o conto é uma gaiola à procura de um pássaro. (…)
Tzvetan Todorov diz que a característica do conto é que ele é tão curto que não nos concede o tempo de esquecer que se trata apenas de literatura e não da vida real.
Nadine Gordimer diz que os contos são categoricamente sobre o momento presente, como o breve vislumbre de diversos vagalumes aqui e ali, no escuro.
Elizabeth Bowen diz que o conto tem como vantagem sobre o romance: um tipo singular de concentração, e que ele cria a narrativa sempre e totalmente segundo os seus critérios.
(…)
Henry James diz que o conto, por ser tão condensado, pode dar uma perspectiva particularizada tanto da complexidade quanto da continuidade.
(…)
Ernest Hemingway diz que os contos são gerados pela sua própria mudança e o seu próprio movimento, e que mesmo quando um conto parece estático e você não consegue discernir qualquer movimento nele, ele provavelmente está mudando e se movendo messmo assim, só que sem você ver.
(…)
Alice Munro diz que cada conto é no mínimo dois contos.

 

É por essas e outras que “Uma outra vida” parecia particularmente promissor. Os elementos estavam todos lá. Embora o sentido não ficasse imediatamente claro, era evidente que havia um sentido. Era o caso de encontrar uma resposta.

Li o conto várias vezes, e depois de cada leitura eu continuava sem concluir qualquer coisa que prestasse. Pedi para algumas pessoas lerem também, e ninguém soube dizer algo de muito concreto. Procurei alguma explicação razoável em outros lugares e, quando estava prestes a desistir, eu mais ou menos consegui encontrar um encaixe (precário, talvez). Penso que eu havia revirado tudo por tanto tempo e com tanta insistência que no fim da contas era só o caso de a ideia tomar alguma forma na minha consciência. Dei a questão por encerrada, mas essa predileção pela ficção difícil nunca arrefeceu.

Quer dizer, a ficção difícil é aquela que não se entrega rapidamente. Ela cede depois de alguma insistência e de um trabalho mais ou menos árduo de formular e descartar hipóteses. É como um jogo, claro, mas não dá pra negar que é aí que (paradoxalmente) você leva a ficção realmente a sério. Todo livro é um ótimo objeto para discussões e reflexões, mas a ficção Frustrante e Perturbadora mostra um modo mais profundo e aflitivo através do qual empreender essa análise — ela não só é desejável como é necessária. Você só vai conseguir algum entendimento sobre aquele contexto se pensar sobre ele, seja breve ou longamente.

Como eu já disse, a coisa é mesmo subjetiva. Não só a Perturbação, mas a própria Frustração. Cada um tem seus mecanismos próprios formados ao longo do tempo, uma constituição que facilita ou impede o entendimento de determinados aspectos de uma obra etc. De um jeito ou de outro, no entanto, há aquela ficção que propõe um desafio maior. Há uma série de narrativas intrincadas, pouco óbvias e cujas cenas e diálogos curiosos parecem empilhados sem nenhuma coerência e por nenhuma razão específica. Extensas ou não, essas obras são provocadoras. Quando elas surgem, é ótimo ver como, seja lenta ou rapidamente, aquela montanha adquire algum propósito, a estrutura deixa de ser aleatória e passagens inteiras passam a fazer algum sentido naquele contexto.

E eu gosto disso: quando a Frustração é superada e a Perturbação aumenta.