O começo é balsâmico: o mar de um azul que salta aos olhos, borbulhando plácido por alguns segundos até que vigorosos acordes ressoem como um despertador, nos lembrando de que não estamos diante de um filme comum, mas sim de uma obra de Paul Thomas Anderson.

O mestre, em vários sentidos, é esse ainda jovem (pouco mais de quarenta anos) diretor e roteirista americano. Reverenciado por muitos, por alguns até comparado ao gênio Kubrick, e seguido por um público, se não numeroso, certamente fiel – do qual eu orgulhosamente faço parte.

Como cinéfilo apatetado que sou, tenho um lema: In P.T.A. we trust! – pena que posso usá-lo apenas de tempos em tempos. Seu último trabalho havia sido Sangue Negro (2007), soberba trama histórica de poder e ruína, ganância e fé, embalado pelos dissonantes acordes de Johnny Greenwood (da banda Radiohead e que também assina a trilha de O Mestre) e coroado pelas interpretações de Daniel Day-Lewis e Paul Dano.

Seguiu-se a isso um hiato de cinco anos, e por mais que seja fã do diretor, considero esse tempo entressafra bastante razoável. Anderson não é um diretor fácil, suas tramas são intricadas, cheias de nuances e metáforas, seus filmes são longos e exigentes aos atores. Seu exercício artístico é, portanto, um tour de force tanto a ele, quanto à equipe e à plateia, de quem exige atenção e, sobretudo, inteligência.

O Mestre, seu novo projeto, não foge à regra, mas revela um Anderson atualizado e maduro – e que também exige maturidade de sua audiência. Paul Thomas Anderson é coisa séria, e seu Cinema é um grande esforço intelectual, um teste àqueles que dizem amar a arte.

Infelizmente o pôster brasileiro tem vendido a obra como: “O filme que aborda a polêmica sobre cientologia” –, assim mesmo, faltando um artigo e reduzindo o escopo da obra à mera esfera religiosa. Mais do que isso, P.T.A. trata aqui da alma humana e de muitas outras coisas que só terão verdadeiro valor se sentidas e racionalizadas pelo individuo que passar pela experiência, pessoal e intransferível, de pagar pelo ingresso, sentar na poltrona por duas horas e alguma coisa e enfrentar esse filme.

A história realmente aborda, de forma metafórica, não linear e nada óbvia a fundação de uma seita muito semelhante à Cientologia: a Causa, liderada pelo carismático glutão Lancaster Dodd, que se auto-define: “escritor, médico, físico nuclear e filósofo teórico… mas acima de tudo, um homem!”. Porém, muito além da religião, aqui está o drama humano, a família e saborosas atuações. Como o antagonista Dodd, Philip Seymour Hoffman confirma seus predicados de perfeição técnica. O ator é altivo na certa medida, incorporando o líder (o Mestre) que a trama exige.

Mas acima de Hoffman, acima da Cientologia, acima dos olhos verdes da lindíssima Amy Adams e, por mais que me custe dizer isso, acima até mesmo de Paul Thomas Anderson, esse filme é de Joaquin Phoenix.

Ponto da tela para onde todos os olhos convergem, o ator impressiona com seu Freddie Quell, assecla do Mestre, alcóolatra incorrigível, veterano da Segunda Guerra e irremediavelmente louco – só não sabemos se pelos traumas da guerra ou por motivos hereditários.  Sua agonia e instabilidade, seus rompantes de fúria, seus socos e tapas em si mesmo impressionam o espectador mais sensível.

Em diversos momentos Phoenix aparece como um animal, um bicho raivoso, fera contrariada solta à cena, disposto a atacar qualquer um, até mesmo os que estão do outro lado da tela e da realidade. Na trama, ele é o contraponto ao iluminado Mestre, mas entre eles cria-se uma cumplicidade fraternal e metafísica (Dodd passa certo tempo tentando lembrar onde os dois se conheceram, em outras vidas). Os embates de Quell são com Peggy (Amy Adams), esposa de Dodd e que vê no ex-soldado o risco de derrocada da Causa; mas sua maior luta é consigo mesmo e com seu intermitente dom para a perdição.

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Com sua magreza assustadora, boca torta, voz sempre embargada e mãos na cintura, Joaquin constrói o mais interessante personagem de sua carreira – mais até do que sua representação de Johnny Cash (Johhny & June, 2005), já que aqui não havia ‘originais’ em quem se basear.

Ganha o filme e encanta à mesma medida que assusta a plateia. Junto a Philip, a Amy e ao ainda muito confiável P.T. Anderson (In P.T.A. we still trust!), faz uma filme repleto de mistério, um caleidoscópio puramente humano, enfim, mais uma obra de arte.

(À @NicolePrestes , a quem dedico um adjetivo e que um dia farei ser fã de P.T. Anderson)