Tenho como uma obsessão pessoal entender a natureza do clássico. Escrevo isso não (necessariamente) como um paciente que faz uma confissão patológica no divã ou um contraventor que quer justificar, no momento do flagrante, decisões tomadas e atos levados a cabo. Não.

Escrevo, sim, como aquele que, sendo um intrigado em estado crônico, passou a lidar com sua condição de uma maneira peculiar, isto é, transformando-a em fascinação. E o fascinado, deslumbrado que é, corre o risco de se tornar um – não raro importuno – proselitista. Correndo o risco de ser tomado por importuno – mas intentando, na realidade, tornar a todos fascinados – queria falar-lhes de minha obsessão.

Frequento bibliotecas desde pequeno e sou um maníaco por leitura desde não me lembro quando. Um dos marcos na minha experiência subjetiva de leitor foram, como para muitos, os livros da série Harry Potter, bem como, embora não para tantos, os da saga do menino-prodígio do crime Artemis Fowl. A partir desse ponto, mais ou menos, a leitura deixou de ser, digamos assim, somente uma “atividade de entretenimento”, e passou a ser, também, uma forma de conhecer melhor o mundo em que eu vivia. É claro que as leituras que eu fazia sempre foram, em alguma medida, um meio de conhecer realidades novas e, por consequência, as minhas próprias; mas esse processo se tornou mais visível e consciente a partir desse ponto.

Deixei, aos poucos, de frequentar a seção infantil da biblioteca municipal daqui para adentrar nos domínios que até então eram ocupados pela literatura adulta, a “literatura séria”. Em tais estantes, um pouco sisudas no início, confesso, um dos primeiros livros que resolvi ler foi justamente O cortiço, um romance clássico de Aluísio Azevedo, do qual eu já tinha ouvido falar nas aulas de literatura do colégio.

Visto que o que experimentei naquelas páginas me pareceu um tanto transgressor – ainda mais em comparação com o estilo infanto-juvenil que eu lera até aquele momento -, era óbvio que eu precisava encontrar um lugar e uma interpretação cabível para aquilo tudo. Por que, diabos, um livro com tanta degradação, podridão e mal-estar era considerado um clássico da literatura brasileira? Era impossível que aqueles sujeitos comparados a “larvas no esterco” pudessem ser mais interessantes que as mirabolantes reviravoltas que eu experimentara em Hogwarts. Essa questão foi um dos estalos que definiram minha experiência de leitor, e que continuam reverberando até hoje.

Quando consegui encontrar um lugar e uma lógica minimamente cabíveis, que me permitissem explicar o estatuto de clássico que O cortiço tinha, eu já era um outro leitor. Minhas leituras a partir de então passaram a se orientar por outros parâmetros, outras questões, outras buscas. Não me entendam mal, não deixei de gostar de Artemis Fowl a seu modo, nem passei a defender a leitura exclusiva dos clássicos, nada disso. O que aconteceu foi que, daquele momento em diante, minha leitura passou a se preocupar com os significados históricos dos livros: o que eles representaram em relação a seu tempo e o que podem nos revelar tanto sobre seus autores quanto sobre a literatura, bem como sobre o período e a sociedade na qual surgiram – e dos quais são frutos. E isso, como vocês já devem ter percebido, se entrelaça imediatamente com o porquê de certos livros serem clássicos e outros não, assim como se entrelaça também com as longas, interessantes – embora às vezes maçantes e demasiadamente passionais – discussões sobre quais livros e quais escritores devem ou não ser considerados clássicos.

Por que aquela maldita baleia branca nos parece tão familiar e ao mesmo tempo tão distante? Por que é que os Joad, ao saírem de Oklahoma e rumarem à Califórnia, se tornaram emblemáticos para compreender a Grande Depressão e os anos 30? Por que a história de um cavaleiro andante alimentando sonhos de fidalguia e aventuras romantizadas com relação a moinhos de vento veio a se tornar um livro tão famoso, tão amado pelos leitores e tão genial no retrato que fez de seu tempo? Como a história da vida de um magnata misterioso chamado Gatsby pode se tornar tão significativa para compreender os dilemas de uma sociedade em transformação?

Embora os porquês, as razões, as justificativas e toda a sorte de argumentos varie em proporções infinitesimais, acho que são perguntas válidas e, sobretudo, prolíficas.

Quando faço essas perguntas, as faço como alguém inserido num determinado campo de discussões, o da história, o que não impede que interessantes discussões extravasem as fronteiras disciplinares, pois – e é esse o meu ponto central – se há algo que não se pode negar a respeito da literatura é que ela é uma experiência humana. Ou seja, ela diz respeito a todos precisamente porque faz parte de nosso mundo, um mundo que mudou profundamente, mas que ainda assim é um mundo palpável e passível de interpretação e discussão, amor e ódio. A literatura foi feita por sujeitos que, como nós, tiveram alegrias, tristezas, dúvidas e dissabores, que viveram a intempérie dos tempos, que viram sobre eles se abater o famigerado zeitgeist, e que, se tiveram experiências de vida muito distintas das nossas, isso só se dá pela própria natureza de nossa história, e não por serem eles seres de outro mundo.

À guisa de conclusão – embora eu não goste muito dessa palavra -, peço que não encarem esse texto como um tratado ou um ensaio, duas coisas que ele definitivamente não é nem intentou ser. Espero, sim, que minhas reminiscências de leitor tenham alguma validade para além de seu valor estritamente particular. Espero, sim, que vocês as encarem como um grande ponto de interrogação a nos provocar a todos – inclusive eu próprio -, como uma esfinge cuja pena por sua não-decifração faça urgir nossa capacidade de responder e perguntar ainda mais.

Antes que eu me torne por demais piegas, dou por findo meu escrito.