“Sob a Lua, num velho trapiche abandonado, as crianças dormem…”

Tinha um sério problema na minha época de escola, um misto de intransigência e espírito contestador que me fazia recusar à leitura qualquer livro que fosse forçado pelos professores. Assim, não passei das primeiras páginas de Memórias de um sargento de Milícias de Manuel Antônio de Almeida, não comecei Dom Casmurro, de Machado de Assis, e nem sequer comprei Capitães da areia, de Jorge Amado, quando minha professora de português (dona Ivana, magricela altiva, com rosto esquelético) ordenou a leitura, anunciando/ameaçando que cairia na prova.

Então agora, numa fase universitária e com compulsão por literatura, tenho que tirar o atraso desta minha revolta juvenil, e faço sem arrependimentos. Ainda sou contra as leituras obrigatórias de colegial. Acho que, dada a péssima qualidade do ensino, geralmente os alunos adolescentes não estão preparados para mergulhar em densas narrativas ou simplesmente não estão nem um pouco interessados nelas. O que se faz nas escolas é um verdadeiro crime contra a boa literatura nacional: forçando alunos a lerem por obrigação, vem-se traumatizando milhares de possíveis leitores-fervorosos do futuro. Mas esse tema espinhoso prefiro deixar para uma postagem futura.

O fato é que em pouco menos de uma semana (contando apenas dias úteis), devorei essa maravilhosa obra brasileira do mais-que-baiano e hoje centenário Jorge Amado. Dormi no velho trapiche abandonado à beira do mar da cidade da Bahia (Salvador), derrubei negrinhas no areal, vi os golpes da luta-dança do capoeirista Querido de Deus, visitei o terreiro de Don’Aninha, ajudei o Sem-Pernas a roubar a casa da família que lhe acolheu – e depois chorei com ele, arrependido e amargurado –, fui preso junto a Pedro Bala e me apaixonei pela arretada Dora.

Que coisa linda é ver seu país bem retratado, com respeito, com beleza, com poesia, nas linhas de alguém que, mais do que conhecer, amou muito toda essa terra, toda essa gente.

Como comunista que foi, ao se debruçar nos miseráveis – com o adicional de serem crianças (“apenas crianças”) –, Jorge desconstrói o cartão postal onde os portugueses atracaram para explorar essa terra exótica e pinta o Brasil com suas reais cores. Não é de se surpreender, portanto, que nesse mundo demagógico de ontem e sempre a obra tenha sido proibida e exemplares tenham sido queimados em praça pública nos anos 1930, época da publicação.

Acompanhando as aventuras e dramas de um bando de jovens moradores de rua com surpreendentes valores morais (que poderiam ensinar muito sobre ética e civilidade a muita “gente grande” por aí), Capitães da areia é, na essência, uma história sobre a liberdade (“o bem mais precioso desse mundo”). Com críticas importantes ao conservadorismo babaca, à hipocrisia perniciosa, à fé de fachada e ao sistema corrupto e doente, o romance dessas crianças-sem-nada tornou-se um marco da nossa literatura e certamente deve continuar sendo apreciado pelas novas gerações – e um atrativo que incita o interesse à obra é a nova e bela edição da Companhia das Letras, que renovou toda a coleção do autor, com um agradável trabalho gráfico.

Então, em sincronia com as comemorações do centenário do escritor já falecido, a neta de Jorge Amado, Cecília Amado, lançou em 2011 a adaptação do livro para o Cinema.

Assim como me negava a ler os livros obrigatórios na época escolar, vi o filme com certa relutância, porque estava tão apaixonado pela obra e tinha lido críticas tão negativas a respeito do filme, que não queria me decepcionar e destruir a magia arrebatadora com que imaginei tudo aquilo enquanto folheava a narrativa. Para minha surpresa (apenas comprovando que os cri-críticos, como eu, não sabem de nada), pude assistir a um filme verdadeiramente maravilhoso – tanto quanto o livro.

Meu maior medo nessa adaptação era de que o filme ficasse preso ao conservadorismo das artes brasileiras atuais, ceifando, assim, o impacto dessa história tão corajosa. Redondamente enganado. Cecília fez com poucos recursos – numa produção que devido à falta de estrutura de nossa indústria, se arrastou por meses sem fim – uma digna transposição à tela dessa grande obra, com bons atores mirins e seguindo, na maioria das vezes, a mesma coragem impactante dos escritos de seu avô.

Capitães… não é um livro fácil de adaptar. Sexo hétero e homossexual, roubos, prostituição, cigarros e bebidas, doença, miséria, morte e tristeza – e tudo isso com crianças! Ainda assim, tirando algumas falhas que parecem irremediáveis no Cinema nacional (cenário de novela, alguns diálogos artificiais, buracos no roteiro…), esse filme entra na lista (junto a Ó Paí, Ó, de 2007, um filme muito melhor do que você, que ainda não viu, possa imaginar) daqueles que melhor transportaram às telas a brasilidade, a baianidade e o ritmo desse povo quente. Justamente por isso, filmes assim tornam-se intraduzíveis e invariavelmente são fracassos internacionais – como O Auto da Compadecida (2000), excelente adaptação de Guel Arraes de um dos mais brilhantes textos da nossa literatura, do paraibano Ariano Suassuna, mas incompreensível aos falantes de outras línguas.

Outro grande perigo que o filme correu e que o levaria certamente ao fracasso estava na escolha do elenco. Escolhas acertadas que se comprovam logo nos primeiros minutos, os desconhecidos atores mirins (todos membros de ONG’s de apoio a crianças) encarnam os célebres Capitães com todo o sotaque malemolente e a esperteza que lhes são fundamentais. Destaque mais que especial a Ana Graciela Conceição da Silva como a adorável e arrebatadora Dora – atenção a essa menina! Espero revê-la logo, logo, em outros projetos.

Assim, a arte se imortaliza. Assim, Jorge sobrevive: na leitura de seus livros, seja com seus novos leitores – crianças que (diferentes de mim) obedecem às recomendações dos professores –, seja por leitores mais velhos que sentem um ímpeto inexplicável de lê-lo, ou nas adaptações de suas obras para a TV com novelas-madrugadeiras, para o teatro ou cinema. Assim a estrela desse baiano brilha no céu da cidade de Salvador, e nós só podemos olhar pra cima, orgulhosos, e agradecer: Salve Jorge!

Ali estavam mais ou menos cinquenta crianças, sem pai, sem mãe, sem mestre. Tinham de si apenas a liberdade de correr as ruas. Levavam vida nem sempre fácil, arranjando o que comer e o que vestir, ora carregando uma mala, ora furtando carteiras e chapéus, ora ameaçando homens, por vezes pedindo esmola. (…) A alegria daquela liberdade era pouca para a desgraça daquela vida  p. 46