Tal como no “Previously on…” que inicia os episódios de muitos seriados, o primeiro parágrafo visa indicar o que você precisa ter na cabeça antes da leitura: você precisa ter lido uma das últimas colunas da Vanessa Barbara para o Blog da Companhia. E só. Afinal, este texto pode ser considerado apenas como um comentário que resolvi publicar separadamente.

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Dia desses, assisti a uma peça chamada Em breve nos cinemas, inspirada na vida e na obra de David Foster Wallace (DFW). Não sou especialista no cidadão, sequer li algo além de um de seus contos e de uns dois ou três textos esparsos. Mas, como já li o título da sua primeira obra publicada no Brasil, eu pude, por exemplo, associar (1) as cenas em que os personagens revelam os seus piores medos para uma câmera à expressão (2) “breves entrevistas com homens hediondos”. Logicamente, pode ser que as tais entrevistas não tenham nada a ver com as cenas que vi, mas isso é um dos trunfos (oi?) de não ter lido o livro.

Outro momento interessante do espetáculo se dá quando uma cena é pausada para notas de rodapé. Explico: dois dos três atores estão envolvidos numa cena e subitamente ficam imóveis quando o terceiro grita “Nota de rodapé!”, como quem grita “Estátua!” na famosa brincadeira infantil. Então, este faz uma série de considerações sobre a cena ou sobre uma palavra específica, interrompendo reiteradamente a cena ao lado: “Esta é exatamente a palavra”, ele comemora quando alcança uma precisão terminológica inesperada por meio de uma palavra aparentemente escolhida ao acaso.

Pelo jeito, DFW era dado a notas de rodapé. O tradutor responsável por Infinite Jest celebrou o dia das crianças revelando no Twitter que tinha passado da centésima nota, um mês antes de ele alcançar 1/4 da tradução. Era interessante saber que DFW curtia uma nota de rodapé antes de ver a peça. Eu sabia de outras coisas – a maior parte delas descobertas em sala de aula, com o Caetano Galindo (o tradutor supracitado) – mas o lance das notas de rodapé, suspeito, era o mais importante.

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“Quando acontece uma coisa muito ruim ou inesperada em nossas vidas — por exemplo, ser demitido de um emprego de vinte anos por comparecer repetidamente ao trabalho com cheiro de verdura cozida, ou morte de tartaruga, ou perder todo o dinheiro para um chefe da máfia —, enfim, quando somos desestruturados por algum incidente, todos deviam selecionar os livros (e pessoas) que gostariam de manter à vista. Só merecem tal honraria aqueles que trouxerem alguma boa expectativa, como os romances clássicos que a gente nunca conseguiu ler ou os lançamentos de não ficção com histórias curiosíssimas sobre caçadores de lulas. Livros que não nos façam recordar o passado e carreguem, em si, a possibilidade de gerar lembranças novas em folha.”

Ao ler esse trecho (e os três parágrafos seguintes), eu descobri que não conseguiria simplesmente comentar o texto da Vanessa, como de costume. Devia pensar mais, amadurecer a ideia e tentar fazer jus ao texto comentado – que não precisava de adendo algum. E, lógico, me recuperar e parar de ver o mundo borrado.

Vanessa atinge o cerne da questão e parece fácil. Muito sucintamente, fala: do que escolhemos “manter à vista”; do período em que evitamos o que nos faz “recordar o passado”; da produção de “lembranças novas em folha”; e, mais adiante, do momento em que passa a ser possível “percorrer as mesmas ruas e frequentar os mesmos parques sem que isso necessariamente nos traga memórias difíceis”.

Mas, mais importante do que mencionar abstratamente “lembranças novas em folha”, ela cita o aprendizado do charleston.

O que é o charleston para você?

O charleston é o charleston, você me responde.

Não há razão para ser mal-educado(a), eu replico.

O charleston pode ser também uma metáfora para as lembranças novas em folha que ativamente produzimos. Nem todo mundo tem pique para uma “variante de foxtrote sincopado, em compasso quaternário, muito em voga na década de 1920, cujo passo característico consiste em balançar os joelhos para dentro e para fora e afastar as pernas, com um giro rápido e brusco dos calcanhares”. Aparentemente, o que importa é correr atrás do seu charleston, não esperar que ele venha magicamente até você.

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Notas de rodapé não são apenas “comentários, achegas ou explicações relativas a alguma passagem de texto”, posicionados “ao pé de uma página impressa”. Elas podem muito bem ser do tipo que há na peça sobre DFW: pensamentos que nos paralisam por nos remeterem a experiências que não queremos lembrar, os quais são suscitados por algo normalmente relacionado a uma pessoa. (Já percebeu como adoram citar autores famosos nessas notas? É igualzinho fora dos livros: quase sempre elas têm a ver com alguém mesmo.)

Quando Vanessa escreve que “todos deviam selecionar os livros (e pessoas) que gostariam de manter à vista”, ela provavelmente está se referindo aos que não apresentam certas notas de rodapé. O problema é que praticamente tudo pode apresentar notas de rodapé. CDs são especialmente pródigos nesse sentido. Filmes não ficam muito atrás. Pudera, até uma latinha de Sprite pode ter, ao lado das informações nutricionais (87 kcal + 21 g de carboidratos + 15 mg de sódio/porção de 200 ml), um grito de “Nota de rodapé!”.

Daí o que nos resta? Ficamos sem ouvir Los Hermanos, Nando Reis, Marisa Monte, Arnaldo Antunes, Mika, Fiona Apple, Damien Rice, Kid Abelha ou Pato Fu, sem rever O fabuloso destino de Amélie Poulain, Moulin Rouge!, Brilho eterno de uma mente sem lembranças, Closer, Kill Bill, Chicago, Os sonhadores ou Beleza Americana e sem tomar alguns goles de um refrigerante de limão?

Sim, ficamos.

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Se me perguntassem atualmente o que é o charleston para mim, eu responderia: o circo.

Explico: num dia desses, me convidaram para uma aula experimental de circo fitness. Taí algo em que eu nunca pensara. A gente iria e voltaria de bicicleta: em uma boa velocidade, alta demais para quem não está acostumado, dava para cumprir o trajeto em 40, 50 minutos. A resposta mais razoável (e curitibaníssima) de alguém meio medroso, asmático e menos flexível do que uma barra de aço seria “Vamos marcar”, uma promessa que nunca se cumpriria.

Só que eu fui.

E pedalei por meia Curitiba até chegar ao local do treino, sentindo-me razoavelmente seguro, apesar de um quase-tombo (me equilibrei no último instante) e de alguns probleminhas com a marcha e com a corrente da bicicleta (ainda bem que eu não estava sozinho) e de um incidente com um desses retrovisores retráteis (felizmente retráteis). E fiz uns exercícios esquisitos que os chineses fazem como alongamento – o dedão do pé sangrou, mas não cheguei a sentir dor. E fiz outros exercícios no trampolim, no trapézio e no tecido acrobático. E voltei para casa.

Enumerar é fácil. Descrever precisamente as sensações daquele sábado, contudo, é mais complicado. Continuo enumerando, portanto.

Você passa as pernas entre os braços e a barra do trapézio. Você se pendura de cabeça para baixo, com os braços abertos. Você, em seguida, está parado no ar, sem apoiar os pés ou segurar na corda, e está tão esticado que ninguém cogitaria dizer que aquilo é “estar sentado”. Você fica de pé sobre a barra do trapézio. Você retorna ao chão, mas não sentia saudade alguma dele. Você polvilha a mão com magnésio – o breu é para quando se escala o tecido. Você responde ao instrutor que não, realmente nunca fez ginástica nem nada parecido na vida. Você aceita o elogio. Você percebe que completou sua primeira oitava. Você vê o mundo do alto, o que lhe é permitido pela combinação do tecido acrobático com uma chave de pé e com a força dos braços. E você não acredita que aquele é mesmo você: “este não sou eu, este não sou eu, não é possível que este seja eu”.

He did. Our story begins as his toes leave the ground.

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Seria simples demais se a história terminasse aí, né? Tipo, ele descobriu seu charleston e foi feliz para sempre.

O problema é que qualquer menção a “circo” gritava “Nota de rodapé!”.

Só que o problema, no final, foi solução. Isso porque ele me obrigou a notar que, assim como tudo que nos rodeia pode apresentar notas de rodapé, todas essas coisas não precisam ter apenas uma nota de rodapé. Entende?

Em frente ao cartaz de uma peça sobre a vida de Clarice Lispector, eu posso me lembrar duma paixão platônica adolescente e pensar que a guria provavelmente ia gostar de estar em Curitiba no dia OU posso me lembrar de como eu mesmo gostava bastante de ler essa autora há oito anos e como eu faria bom uso de um ingresso para o espetáculo. Em Paris, eu podia tentar descobrir as ruas pelas quais Hemingway passou OU aproveitar ao máximo os meus poucos dias nessa cidade, criando memórias pessoais. Na rua próxima à minha academia, eu podia deixar que meu irmão continuasse a colher, sozinho, algumas das frutinhas mais vermelhas das duas pitangueiras OU podia pegar algumas eu mesmo, prová-las novamente e descobrir que há dias em que não tem nada melhor do que pitangas maduras, ainda molhadas de chuva, mesmo que durante a infância eu não fosse exatamente fã delas.

Se eu tivesse recusado o convite para a aula de circo tão somente porque a palavra “circo” gritava (e ainda grita) “Nota de rodapé!”, um dos meus dias favoritos do ano não teria acontecido e eu teria perdido a oportunidade de descobrir possibilidades inauditas naquilo que chamo de eu mesmo. Porque depois de uma longa sequência de “este não sou eu, este não sou eu, não é possível que este seja eu”, chega o momento em que você pensa “peraí, sou eu mesmo que estou aqui”. E aí você se inclui, egoisticamente, entre as notas de rodapé da palavra “circo” e percebe que é besteira dar tanta atenção à outra nota de rodapé, que parecia exclusiva.

Você percebe, então, que isso vale também para dezenas ou centenas de outras notas de rodapé que andavam gritando por aí; que você tem todo o direito de ouvir Arnaldo Antunes sem isso te dar vontade de quebrar os porta-retratos na parede; que você pode ver Moulin Rouge! sem terminar o filme em posição fetal; que você pode beber sua Sprite, doce como deve ser, sem ela servir de metáfora para o amargor da vida. Porque tudo isso é seu também. E é isso que a nota de rodapé vai gritar da próxima vez.

“[…] daí pra frente é um pulo.”