Quanto mais lembramos mais esquecemos.

A lembrança me engana diversas vezes, a minha memória não é a mesma de três anos atrás e definitivamente não é a mesma de dez anos atrás, não por um problema genético, mas por um carregamento excessivo de informações efêmeras e, em outro casos, porque sofro do imediato efeito Google. Tudo isso fremiu  em minha mente durante e depois da leitura do livro de Julian Barnes, O sentido de um fim, vencedor do Prêmio Man Booker 2011, no qual ele fala sobre lembranças forjadas e histórias “adaptadas” de nossas próprias vidas, isto é, como enganamos nossa memória ao recordar o mesmo momento em etapas diferentes da vida.

Anthony Webster é um senhor de 60 anos, aposentado, que trabalha na biblioteca de um hospital. É divorciado, mas mantém boa relação com a ex-mulher e tem uma filha chamada Susie. Tony, como era chamado pelos amigos, repassa memórias de casos da época do colégio, dividida com seus três inseparáveis amigos Colin e Alex, dois jovens de classe média, e o novato Adrian Finn – um rapaz brilhante e precoce com uma história de vida obscura. Relato após relato, Tony nos conta sua história tal qual permanece em sua lembrança, com detalhes e falhas, mas com a certeza de que aconteceram. Essas certezas absolutas desmoronam quando uma mulher, de que ele não se recorda, deixa a ele o diário de Adrian e 500 libras de herança. A ligação dessa mulher com sua ex-namorada da faculdade, Veronica Mary Ford, desenterra detalhes sobre uma história traumática e até então encerrada definitivamente.

Todo o processo para relembrar faz com que a história do protagonista seja um engano atrás do outro, um erro adolescente, um ciúme juvenil, uma inexperiência que lhe custou uma amizade e um acúmulo de consequências. Os assuntos, que à época soavam grandiosos e urgentes, voltam na recordação como um retrato típico da juventude – com explicações pautadas entre a diferença de sair com garotas ou se relacionar – mas também como uma ferramenta de reavalição do que ocorreu versus o que foi perdido nas lacunas da memória por simples negligência.

Ao recordar a visita à casa dos pais de Veronica, Tony relata o tamanho constrangimento e desconforto que sentiu na frieza da namorada, no julgamento negativo de seu sogro e cunhado, e a estranha conversa com a sogra. Aquele foi um final de semana para se esquecer. E um dos desencadeadores do término entre os dois. A racionalização dele para o fim do relacionamento tem sentido – a falta de afinidade, a falta de intimidade -, e tudo parece conspirar para que Veronica seja a culpada pelo fim iminente, que seja ela a covarde da situação.

Muitas peças são pregadas pelos relatos incompletos do narrador: ora ele tem certeza de não terem importância – como certas cartas -, ora nem tanto – quando ouve os relatos por terceiros. Com a crescente volta de um passado abandonado junto com Veronica, várias situações são revistas por outro ângulo, por um Tony mais velho e experiente, porém ainda não maduro o suficiente para enxergar o que é evidente. Ele necessita saber o que está no diário do seu amigo, mas nem ele e tampouco o leitor saberão. Comprovando assim o talento de Julian Barnes para segurar os que acompanham a história de Tony e querem, tanto quanto ele, saber o conteúdo das anotações de Adrian, a verdadeira razão pelo desprezo de Veronica e qual o grau de envolvimento do protagonista com eles.

 

“História é aquela certeza fabricada no instante em que as imperfeições da memória se encontram com as falhas de documentação”

 

A imprecisão dos relatos de Tony, somada à sua frágil e corrompida memória, transformam O sentido de um fim em um suspense de resgate de lembranças, longe daqueles clichês de fantasmas do passado que servem para a redenção de protagonistas, feito de descobertas do presente a partir de novos fatos, escondidos, ignorados ou esquecidos. A ansiedade progressiva é de tirar o fôlego e a cada nova descoberta, a cada nova evidência, a cada novo fragmento e falha, uma nova história inquietante do passado se reconstrói, embora saibamos que de nada adianta, o presente não mudará nunca.