Apesar de ser formado em História e de estar terminando meu mestrado na área, não costumo ler muitos romances históricos. Se eu fosse um pouco mais taxativo até diria que tenho um certo ranço com relação a romances históricos. Estou de certa forma acostumado a receber olhares de surpresa quando, ao invés de escolher um deles, escolho um “livro de ficção qualquer”.

Uma vez que vou me prestar aqui a falar sobre o livro História do cerco de Lisboa, de um dos meus escritores favoritos, o português José Saramago, acho que vale a pena tecer algumas linhas para explicar esse meu cacoete e, por consequência, o fato de eu ter gostado tanto do livro em questão.

O fato de eu ter romances históricos como opções secundárias de leitura, vale dizer, está ligado a um gosto pessoal e não à qualidade dos livros, necessariamente.

Acho que a cadência da narrativa dos romances históricos é muitas vezes truncada por conta da profusão de nomes, datas e fatos que os autores, acreditando estar dando concretude à historicidade da obra, nelas colocam. Isso leva, na minha opinião, a outro “problema” dos romances históricos, que é o de as histórias, por se preocuparem tanto com essa assim-chamada contextualização, se verem bordejando a tênue linha que as separa de compilações enciclopédicas.

Para além disso, poderia apontar outras características que não me atraem em romances históricos, tais como o fato de alguns escritores usarem da profusão de dados para darem mostras de sua erudição ou, ainda, por caírem, não raro, nas armadilhas das concepções lineares da história. Tudo isso, se não muito bem pesado, arquitetado e devidamente executado, pode conduzir a uma narrativa que, por abdicar de alguns pressupostos da ficção, não consegue encontrar o caminho de sua expressividade.

Para coroar tudo isso – e quiçá a minha implicância -, há a interpretação subjacente do termo “histórico” em “romance histórico”, que talvez inconscientemente cria uma divisão entre romances históricos e romances não-históricos. Isso pode levar a uma confusão entre ficção e realidade que a dicotomiza de forma empobrecedora.

Implicâncias ou não, procedentes ou não, esses são alguns dos pontos que tenho notado nas, admito, poucas incursões que fiz no gênero do romance histórico. Em parte pelo contraste com elas que o romance História do cerco de Lisboa, publicado em 1989, apresenta originalidade e conseguiu me cativar.

O protagonista do livro é Raimundo Silva, um revisor que cometeu um dos sacrilégios da sua profissão: revisou de modo a alterar o sentido do que o escritor originalmente escrevera. Por conta de sua atitude, o livro “História do cerco de Lisboa”, que ele revisava, passou a afirmar que os guerreiros cruzados NÃO ajudaram os portugueses a tomar Lisboa e expulsar dela os mouros.

Como era de se esperar, a inserção do “não” teve consequências em sua carreira, embora tenham sido elas atenuadas devido ao histórico de bons serviços que Raimundo havia prestado à editora na qual trabalhava. Uma das mudanças decorrentes de seu ato (além da óbvia mudança de sentido do livro) foi a contratação de Maria Sara, uma espécie de supervisora que ficou responsável por acompanhar o trabalho dos revisores e evitar que um “deslize” como esse passasse novamente às prensas da gráfica. É precisamente ela que passa a ter um papel determinante no desenrolar posterior da trama.

Maria Sara, num lampejo de ousadia, diz que o “não” de Raimundo fora, provavelmente, a coisa mais importante que ele fizera em sua vida, pois com um golpe de caneta ele havia mudado a história de Portugal. Devido ao peso de seu ato, deveria ele, Raimundo, escrever uma história que tomasse como pressuposto o não-auxílio dos cruzados nesse episódio da Reconquista. A partir desse ponto estão lançadas as bases para que a história do cerco de Lisboa seja (re)contada.

(Re)Contar a história do cerco de Lisboa alterando uma informação tida como sólida e inegável é um exercício de subversão. Mas isso não significa, necessariamente, que a subversão será “algo mais” do que subversão. Para ser mais emblemática, expressiva ou significativa, ela precisa inserir-se numa trama que potencialize sua expressividade e extrapole seu sentido particular, dotando-a de peculiaridade. No caso de História do cerco de Lisboa, a subversão de Saramago está atrelada a um questionamento deveras prolífico tendo em vista a poderosa tradição católica de Portugal: afirmar que os cruzados, que oficialmente lutavam em nome da Igreja Católica, não auxiliaram os futuros lusitanos em sua batalha por Lisboa é uma afirmação no mínimo ousada.

Embora isso exprima, na minha opinião, a argúcia e a mordacidade de Saramago ao tratar do romance histórico, ele não para por aí. Com uma erudição precisa – e um tanto irônica – Saramago vai contando as duas histórias ao mesmo tempo: a de Raimundo Silva, no presente, e a do cerco de Lisboa, no passado. Isso permite que uma metalinguagem tome constantemente o palco da trama. As temporalidades, nesse sentido, se mesclam e se sobrepõem, expressando o (des)continuum irregular de idas, vindas, permanências e rupturas que caracteriza a história e a percepção dela pelos únicos seres históricos, os homens.

Assim, Saramago foge de uma das questões que me incomodam nos romances históricos: a essencialização do passado. Quem olha o passado o faz a partir do presente, sendo essa a própria natureza da observação historiográfica. Portanto, o olhar sobre o passado será sempre orientado por interesses calcados no presente. Mais do que amarras, esses interesses são expressões da historicidade mesma de nossa natureza, e Saramago não os ignora na medida em que vai cardando os dois fios narrativos que conduzem a trama: da mesma maneira que a vida de Raimundo passa a estar diretamente ligada ao livro História do cerco de Lisboa, o (re)contar da história encontra-se entranhado no tempo em que se dá o (re)conto.

Saramago demonstra perícia também em outro sentido: em sua exploração dos percalços da historiografia ao procurar recompor o processo histórico. Para isso, o escritor se vale da metalinguagem, pois o prisma duplo criado pela proposta da trama – a história do cerco e a história de Raimundo escrevendo a história do cerco – lhe permite cotejar o fazer da historiografia. Desse modo, Raimundo assume o ônus do ofício do historiador, e passa a buscar sustentação para sua polêmica afirmação nas evidências empíricas. A busca o põe diante das próprias limitações do romance histórico: na medida em que a trama do livro encontra-se diretamente acoplada aos acontecimentos, apesar de negá-los parcialmente (o “não” dos cruzados), Raimundo Silva, antes das vicissitudes do romancista, se vê às voltas com a concretude dos fatos com a qual lida o historiador.

Através desse engenhoso artifício, Saramago escreve, a um só tempo, sobre o cerco de Lisboa, sobre a prática historiográfica e sobre a peculiar constituição do romance histórico. E consegue preservar a veia crítica em cada um desses assuntos. Quando Raimundo depara-se com as plausíveis razões para a ajuda dos cruzados, Saramago está diante da concretude factual irredutível com a qual lida a historiografia. Quando Raimundo percorre a bibliografia relativa ao cerco feita tanto a priori como a posteriori, Saramago está nos contando a história do cerco. Quando o revisor-escritor busca personagens e uma trama subjetiva à sombra dos “grandes eventos”, como a de Mogueime e Ouroana, Saramago está refletindo sobre a dinâmica interna do próprio romance histórico enquanto gênero e enquanto construção literária.

E há ainda mais: o sucesso da empreitada de Raimundo expressa a relativa maleabilidade subjetiva dos fatos históricos e seu uso (e abuso) pela historiografia. O próprio fato de Raimundo ser um revisor talvez seja parte de uma ironia fina de Saramago, afinal, os revisionismos se tornaram expedientes relativamente comuns da historiografia.

Com uma proposta ousada tanto em termos de história quanto em termos de historiografia, Saramago nos leva a formular digressões sobre o romance histórico, sobre a confiabilidade dos fatos e sobre a própria construção do conhecimento. Acompanhando os passos e os floreios de Raimundo, o escritor nos conduz por caminhos tortuosos e controversos, mas nem por isso menos interessantes. Por conta da lucidez com que encara sua literatura (aliada, ainda, a seu humor ácido e sua rica e intrincada prosa), Saramago faz de um romance histórico um livro também teórico e ficcional. Um livro que ao emaranhar as dimensões da narrativa literária e historiográfica, nos mostra a profundidade do diálogo entre uma e outra, seja na dissonância ou na harmonia.