A obra de Roberto Bolaño é empolgante e sufocante. A cada nova leitura (ou releitura) há uma descoberta familiar. É como se lêssemos o mesmo livro inacabado diversas vezes e ele se transformasse diante de nossos olhos, contendo uma familiaridade ímpar que reconquista os fãs do escritor. Poetas, escritores, críticos e leitores são personagens de Bolaño, viciados em literatura e filosofia, que os oprimem, sugam-nos e sustentam-nos, à mercê de regimes políticos. Personagens marcantes, que transitam de uma obra para outra, tais quais Lalo Cura (Putas Assassinas e 2666), Arturo Belano (Os detetives selvagens, Chamadas telefônicas, Estrela Distante, Putas Assassinas) e Óscar Amalfitano, professor a que se dedica boa parte de 2666, e que agora é personagem central de As agruras do verdadeiro tira, livro póstumo do autor chileno, lançado em fevereiro pela Companhia das Letras.

Os leitores de Bolaño reencontram o “pendurador de livros em varais” aos cinquenta anos de idade, convivendo com sua homossexualidade recém-descoberta graças ao seu envolvimento com um aluno, Joan Padilla. O caso dos dois é descoberto pela reitoria da universidade onde Amalfitano trabalha e o professor é convidado a retirar-se. Ele se muda então para Santa Teresa, no México, com a filha adolescente Rosa – que aos poucos se afasta do pai após descobrir sua nova orientação sexual – e se dedica a dar aulas na universidade local, ler e escrever anedotas sobre as obras de J.M.G Arcimboldi, além de se corresponder com Padilla por meio de cartas e postais febris.

Em paralelo à história de Amalfitano, acompanhamos relatos sobre a vida de Pancho Monje, um jovem amaldiçoado por uma árvore genealógica trágica – em uma espécie de homenagem a Cem anos de solidão -, e dos gêmeos Negrete, em especial de Dom Pedro Negrete, um dos homens mais destemidos (e temido) de Santa Teresa.

Enganam-se os leitores que ignoram As agruras do verdadeiro tira pensando que será apenas um rascunho d’A Parte de Amalfitano, do calhamaço 2666, por se tratar de algo publicado postumamente. Não estariam de todo errados se o encarássemos como uma prequência, por trazer eventos anteriores ao de 2666, mas muitas coisas mudam quando os personagens de Roberto Bolaño migram de um livro para o outro. Em As agruras do verdadeiro tira descobrimos que Amalfitano não foi abandonado pela mulher Lola como apresentado em A Parte de Amalfitano, mas perdeu a esposa por quem é apaixonado, Edith – mãe de Rosa -, para uma grave doença. Também não é citado o começo de sua loucura com o livro Testamento geométrico. Outro ponto relevante é o caráter nômade do personagem, suas mudanças de país passam pela América do Sul (incluindo Brasil) e Europa. Ou seja, é o mesmo personagem sendo outro personagem (ou com outra história de vida) – o que é ótimo para velhos e novos leitores.

Há também diversas referências às outras obras de Roberto Bolaño. As primeiras linhas de As agruras do verdadeiro tira, em que Joan Padilla classifica os poetas entre heterossexuais, homossexuais e bissexuais – ou mais precisamente entre bichas, bichonas, bichorras e viados – remete ao irrepreensível Os detetives selvagens e à “palestra” de Ernesto San Epifanio, durante a festa de Catalina O’Hara, sobre a sexualidade dos poetas. E uma ponte interessante entre 2666 e este exemplar é o manicômio Mondragón, citado por pessoas bem próximas de Amalfitano, como também os assassinatos no deserto de Sonora.

O humor de Bolaño permeia todo o livro, ora com brincadeiras jocosas com os amigos de profissão, como Vargas Llosa e Enrique Vila-Matas, ora com pequenas alfinetadas e zombarias sobre universidades e docentes. O lado crítico do autor é bem pertinente, como no nome J.M.G. Arcimboldi, uma evidente homenagem a Jean-Marie Gustave Le Clézio. O autor, de quem Amalfitano é fã, possui uma vasta obra literária de grande qualidade, mas demora décadas para ser reconhecido como um verdadeiro e indelével gênio. Le Clézio, na época em que As agruras do verdadeiro tira foi escrito – entre 1980 e 2003 -, não havia recebido o Nobel, o que fez Bolaño perder a fé em prêmios literários. Será que o chileno recuperaria o alento após o resultado da academia sueca em 2008?

E nem preciso falar apenas dos livros de Roberto Bolaño como (auto)referência, a lista de escritores e poetas citados ao longo do livro são um prato cheio para as prateleiras de próximas leituras.

É bom frisar que não há qualquer necessidade em ser um perito no autor chileno para se entreter com o livro. É divertido caçar tais autorreferências, como num filme que tenha homenagens implícitas em cenas e falas, mas que não são totalmente necessárias para o desenvolvimento da história.

O desenvolvimento da narrativa, por sinal, é o grande atrativo de Roberto Bolaño. Os estilos das histórias bolañescas são saborosos e inquietantes. No caso As agruras do verdadeiro tira, parte segue um tom detetivesco entre um interrogatório jogado pelo capítulo 9 da primeira parte, até quando encontramos as histórias de Dom Pedro Negrete e Pancho Monje. A priori essas histórias paralelas destoam e somente perto do desfecho se encontram, de alguma forma, com a trajetória de Amalfitano. Destoar não é a palavra adequada, se levarmos em consideração que o livro não segue uma linearidade. Por isso, quem ficar atento às minúcias aproveitará ainda mais a leitura.

Dotado de momentos de amargura, solidão e loucura, As agruras do verdadeiro tira não chega a ser o que podemos classificar como obra bela e tocante, mas talvez caótica e revirada como a vida nômade de Amalfitano. Ainda sendo um livro muito bom, eu não o recomendaria como o melhor começo para as obras de Roberto Bolaño, não pelas referências, mas por achar que um amadurecimento prévio do leitor ou um mínimo conhecimento sobre as obras de Bolaño permitirá que se usufrua ainda mais.