Como cientista social em formação, em minhas aulas de Sociologia discutimos, entre os muitos e quase infinitos problemas da convivência humana, a difícil questão do expressivo aumento da idade média dos cidadãos, aliado ao aumento da expectativa de vida, especialmente na Europa. Uma sugestão de minha professora deu a ideia para esse artigo: o Cinema contemporâneo europeu representando justamente essa questão sociológica.
Inicialmente pensei em Amour, de Michael Haneke: dois octogenários num apartamento parisiense, enfrentando eles mesmos as dificuldades da terceira idade. O filme não mostra, mas sugere no melhor estilo Haneke, que o casal vive sozinho já há tempos, recebendo esparsas visitas de sua despreocupada filha (Isabelle Huppert) e praticamente nenhuma do neto, e se mantêm ativos através de atividades culturais e no universo erudito em que estruturaram sua casa.
Anne (Emmanuelle Riva), já em seus momentos finais e bem debilitada, tenta expressar algo a sua filha, mas sem sucesso. Das poucas palavras compreensíveis, notamos que ela fala sobre dinheiro e sobre a casa. Uma cena que pode passar sem maior importância deve, contudo, ser vista com mais atenção pela “luneta sociológica”: a preocupação financeira representada nessa fabulosa cena é uma realidade dos idosos dessa região do mundo, especialmente em tempos de crise financeira e recessão global. Se a situação tornou-se difícil para os jovens europeus, imagine para os pensionistas em meio às medidas de austeridade e cortes gerais?
Exemplo melhor do que Amour é E Se Vivêssemos Todos Juntos? (2011), comédia francesa surpreendentemente profunda estrelada por Jane Fonda (impecável atuando em francês). Com foco justamente nos recentes terremotos econômicos do continente, o diretor Stéphane Robelin acompanha um grupo de amigos idosos que por problemas financeiros, solidão ou iminente morte, decidem morar juntos, para que na ausência de filhos mais zelosos, um cuide do outro nos anos finais. A experiência se torna estudo antropológico quando um estudante (Daniel Bruhl, de Adeus, Lênin!) decide, no melhor estilo de observação-participativa, juntar-se a eles e fazer do grupo sua tese de Etnologia.
Ambos os filmes, assim como tantos outros do Cinema europeu e especialmente o francês, retratam uma geração extremamente culta que hoje atinge os setenta, oitenta anos ou mais, com isso gerando novas demandas e revelando os problemas sociais, econômicos e práticos às políticas públicas para a terceira idade. Como lembra a Jeanne de Jane Fonda nesse filme, embora idosos, eles ainda vivem e têm necessidades, inclusive sexuais.
Outro filme recente, já em pré-estreia no país, também aborda o tema: O Quarteto, estreia de Dustin Hoffman na direção, se passa numa luxuosa casa de repouso para artistas e retrata as atividades, tanto recreativas quanto intelectuais, desse grupo que ainda tem pulsão de vida.
Dados do estudo “Ageing and Life Course” da OMS apontam que o mundo chegará a 2 bilhões de pessoas acima dos 60 anos em 2050 – atualmente são 605 milhões. O relatório da organização, embora celebrando as causas do aumento da expectativa de vida (diminuição da mortalidade infantil e controle de fertilidade, por exemplo), alerta para as dificuldades geradas por essa nova situação, apontando os cuidados especiais que esse nicho demanda, como sistemas de saúde adequados e mais eficientes e outras necessidades específicas.
Ainda de acordo com o relatório, em 2050 o mundo terá mais de 400 milhões de pessoas acima dos 80 anos. Serão 400 milhões de Annes e Georges, de Amour, mas certamente nem todos em condições minimamente dignas como a deles. A preocupação global deve ser com os que virão, com as novas gerações, com as crianças e jovens, mas também com os que já estão aqui, que guiaram o mundo por um tempo e que agora passaram o bastão para nós.
Ao Cinema cabe a importante tarefa de também retratar essas novas contingências e de revelar o mundo palpável que se avizinha. Sem profecias apocalípticas ou visitas de seres de outros planetas, esse é o futuro desse mundo em que vivemos todos juntos.
Ótimo post. Vi “Amour” há algumas semanas e ainda não consegui tirá-lo da cabeça. O filme é MUITO bom. Também notei esse aumento de idosos sendo retratados no Cinema. Além desses que você citou, no fim do ano passado vi “O Exótico Hotel Marigold”.
E, ao ver “Amour”, lembrei de um filme de ficção científica chamado “O ano de 2020” (Soylent Green). Se não me engano é um filme produzido nos anos 1980 (um professor de biologia passou em uma aula do colégio uma vez) e retrata um mundo superlotado, com muitas pessoas sem condições mínimas de viverem com dignidade, alimentos saudáveis (carne, vegetais frescos) são vendidos por um preço altíssimo no mercado negro, pois praticamente não existem mais – e só os muito ricos podem comprar -, enquanto os demais habitantes se alimentam de “soylent green” (um biscoitinho feito com carne de pessoas mortas). E, no meio de todo o caos, mostram um lugar onde as pessoas vão para morrer em paz – quem achar que já viveu o suficiente, pode ir para esse lugar, onde recebem um tratamento digno antes da morte: lençóis limpos em uma cama, a projeção de um filme tranquilizante, enquanto recebem uma injeção mortífera (se não me engano, a morte era por meio de uma injeção). Sei que é muito tabu, que o senso comum dita que precisamos lutar sempre pela vida, mas será que as pessoas precisam mesmo passar pelo que a Anne passou? Me dá uma sensação muito estranha porque ela parece ter sido uma pianista brilhante, amante das artes e uma mulher independente e de repente, tudo que lhe resta é um corpo ineficiente e a decrepitude irreversível. E isso porque ela e o marido ainda desfrutam de uma posição socioeconômica boa, podendo contratar profissionais e comprar o necessário. No lugar dela, eu ia querer morrer, por escolha própria, em algum lugar tranquilo, como em “O mundo em 2020”.
Obrigado pelo comentário e pelos elogios!
Pensando um pouco mais, sempre nos lembramos de novos filmes – assim que fechei o post lembrei de Habemus Papam, que mesmo não se enquadrando tão perfeitamente no assunto, dá um apanhado bacana sobre os idosos na Itália.
Vou procurar ‘O Mundo em 2020’, realmente nunca tinha ouvido falar e parece interessante.
Lembro esse seu comentário-reflexão, além de concordar com muitas coisas, lembrei de um ensaio do Montaigne, sobre filosofar e morrer . Ele escreve que a morte pode encerrar muitos males, como por exemplo uma doença degradante, como a de Anne, e chega a insinuar o valor desse direito de escolha de morrer, mas levanta também uma questão importante: quando é que sabemos que o sofrimento é irreversível? Como sabemos que não há mais volta? Por exemplo: não dá pra se matar porque se está com câncer, ou com Aids, porque essas doenças já são, senão curáveis, capazes de serem vividas com dignidade. Quando saber, diante de um derrame, se ele é irreversível (portanto, hora de desligar os aparelhos), ou se vale a pena lutar pela reabilitação que, em muitos casos, é surpreendente e quase que total?
Como todas as coisas da vida humana, é complexo, demanda reflexão.
Também prefiro morrer por escolha própria. Acho, inclusive, que o suicídio não é um ato de covardia, como muitas falam pela concepção cristã, mas sim um ato de coragem máximo, um mergulho no precipício.
É difícil, mas vale a pena pensar sobre…
Abraços!