Demorei um pouco antes de ceder e ler A culpa é das estrelas, escrito por John Green. Tive medo de comprar mais um best-seller desses que estão na boca do povo e que, após lidos, se mostram nada menos do que decepcionantes. Comecei, inclusive, a lê-lo aos pouquinhos nas livrarias em que passeava – creio que devo ter chegado à página 64. Mas o fato é que muita gente boa estava recomendando tanto o livro que eu aproveitei uma boa promoção e garanti meu exemplar.

Resumo da ópera: voltei ao início, devorei em um dia (não consegui parar de ler durante uma festa de casamento: comia docinhos requintados enquanto engolia o choro – aliás, recomendo a experiência), ri, chorei, dei sorrisos grandes o suficiente para causarem rugas permanentes e me apaixonei pelos personagens.

Obsessivo como sou, pensei em ler imediatamente o resto da obra do cidadão. Peguei An Abundance of Katherines, Looking for Alaska, Paper Towns e Will Grayson, Will Grayson. Tudo em e-book. Devido à facilidade possibilitada pela plataforma digital, não me limitei a baixar livros desse autor. Fui atrás de algumas coisas que poderiam me interessar, alguns livros do Philip Pullman, que já conhecia, e um ou outro livro de YA recomendado por uma amiga. Quando percebi que um dos livros de Green tinha sido escrito em dupla, tentei conhecer melhor o coautor e baixei uns dois dele: Boy Meets Boy e The Lover’s Dictionary.

Pronto: tinha leitura suficiente para alguns meses.

Como nunca tinha lido e-book algum, fiz uma pesquisa simples no Calibre (programa que, além de facilitar a conversão de um formato de livro para o outro, também serve como leitor de e-books): qual o livro com o menor número de páginas? Resposta: Boy Meets Boy. Não seria minha primeira escolha, mas o que estava em jogo era a minha capacidade para ler e-books no computador ou somente em um e-reader, não o que eu estava a fim de ler.

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A história de Boy Meets Boy foi criada, segundo introdução do autor, para os amigos dele; uma espécie de presente de dia dos namorados. O título faz referência ao esquema seguido por muitas comédias românticas: o rapaz encontra a garota, o rapaz perde a garota, o rapaz conquista (fica melhor do que “consegue”, acho) a garota. Isto é, com a clara diferença de que, no livro de Levithan, ambos os protagonistas são garotos.

Acho que todo mundo já deve ter passado por tempos nos quais aparentemente nada podia dar errado. (Alguns chamam esse período de adolescência; eu certamente não.) Quando isso acontece, costumamos nos esquecer de sermos cautelosos: somos super-heróis e nossas ações não machucam os outros porque, rá!, todo mundo também deve ser meio super-herói. Preciso dizer que isso é uma ilusão e que é só uma questão de tempo até quebrarmos a cara? Não, né? Pois bem: é a vez de Paul aprender essa valiosa lição. Ele gosta de Noah, um garoto recém-chegado à cidade, mas também tem sentimentos não resolvidos por Kyle, seu ex.

É basicamente este o principal conflito da narrativa, ainda que não seja o único – é meio estranho falar em “conflito” num livro que se inicia com um show numa livraria (“[…] because sometimes you just have to dance in the Self-Help section of your local bookstore.1) e finda com um baile escolar. Parece que de alguma forma estou menosprezando os motores da narrativa tão somente por se tratar de YA, mas não creio que seja o caso. O que realmente me fez torcer o nariz para o livro antes de lê-lo foi uma resenha no Goodreads.

Nela, Karen fala sobre a utopia gay apresentada no romance. Na comunidade de Paul (bairro ou vizinhança que nunca é especificada): os escoteiros-mirins foram expulsos por sua política homofóbica (em vez de boy scouts, o local passou a ter joy scouts); uma franquia de fast-food seguiu o seu rumo como a lanchonete favorita dos adolescentes, mesmo após ter se tornado vegetariana mediante um boicote geral; o(?) quarterback do time de futebol americano também é a homecoming queen da escola – já há algum tempo, só é chamada de Infinite Darlene (esqueçam o seu nome anterior, Daryl). Além disso, os pais de Paul nunca tiveram problemas com a homossexualidade do filho. Karen se perguntava se o escapismo – em outras palavras, “o politicamente correto” – da trama, além de inverossímil, não serviria apenas para tornar a realidade ainda mais dura do que já era para os envolvidos, i.e., os adolescentes gays.

Eu tinha um questionamento semelhante com relação ao seriado Glee, do qual vivia falando mal. Parei de ver muito no começo, mas as histórias envolvendo o personagem Kurt não me pareciam verossímeis, ainda mais depois de seriados como Ugly Betty e United States of Tara terem construído personagens gays adolescentes mais complexos e reais – Justin e Marshall, respectivamente; o primeiro, inclusive, é retratado desde a infância. Continuo sem assistir ao seriado, mas parei de falar mal, por razões como as que exponho a seguir:

– Verossimilhança pra quê? O realismo não é uma regra. Não sou desses que igualam as palavras ficção e mentira; porém, tampouco sou dos que julgam que os romances devam retratar a realidade – isso é um dever do jornalismo literário, não da ficção. Uma das possibilidades desta é, sim, a de fazer o leitor escapar de uma realidade, ver outros mundos possíveis, conhecer pessoas com problemas que não poderiam ser mais distintos dos seus. Há algum problema intrínseco nisso? Creio que não. Não recordo se Umberto Eco fala a respeito disso no Seis passeios pelos bosques da ficção, mas penso que a palavra final é do leitor mesmo – ainda que algumas descrenças sejam mais difíceis de se suspender do que outras. Se quem lê estiver disposto a acreditar e a entrar naquela história, pronto: o pacto ficcional foi criado.

– A realidade entrevista. O parágrafo anterior talvez tenha dado a impressão de que não haveria conflito algum relacionado à comunidade-utopia criada especialmente por Levithan para o romance. É uma impressão errônea e peço desculpas por isso. Ainda que o livro “peque” por meio que representar heterossexuais como minoria – ao menos entre os personagens importantes para a história – há aqui e ali brechas que permitem entrever algo de tom mais realista. Há algumas tentativas de bullying por parte de Chuck contra Infinite Darlene – ainda que o livro justifique a atitude com o interesse não correspondido daquele por esta, ou seja, pura dor de cotovelo pela rejeição. As coisas já são mais difíceis para Kyle, que sempre lembra a Paul o quanto ele é sortudo por nunca ter tido dúvidas a respeito do que era e de sempre ter sido apoiado por todos ao seu redor. E, finalmente, o caso mais emblemático é o de Tony, que vive em outra vizinhança/bairro, o que lhe dá uma percepção melhor de como a comunidade de Paul é atípica. Sim, seus problemas com os pais religiosos provavelmente parecerão minúsculos diante de casos semelhantes que vemos em nosso dia a dia, mas já é um contraponto ao microcosmo inventado para o romance.

“I love being with you and Joni and the rest of the group. I love being a part of that. But I can never really enjoy it, because I know that at the end, I’ll be back here. Sometimes I can forget, and when I can forget, it’s bliss. But this past week has been hell. It’s like I’ve been pushed back into the shape of this person I used to be. And I don’t fit into the old shape anymore. I don’t fit.”

– O legal de toda utopia é… não ser mais. Não é nada difícil ler o livro com um muxoxo de cinismo. Ou com o seguinte pensamento: “depois de ler, vai lá fora encarar a vida, só para ver o que é bom para tosse”. Creio que o mesmo valha para livros como A culpa é das estrelas e As vantagens de ser invisível: se você quiser ser cruel com esses personagens gentis de YA que viraram amigos íntimos de adolescentes pelo mundo afora, não é necessário pensar muito. As provocações vêm muito facilmente. A bolha criada por Levithan é bonitinha demais, praticamente inofensiva, certinha de uma maneira descabida. Não incomoda – e há toda uma tradição pregando que a literatura deve fazê-lo. Não poderia estar mais distante da realidade, não é?

É? Será? Sou bem apegado às minhas certezas e uma delas é a de que não vivemos no melhor dos mundos. Nem de longe. Mas de vez em quando surge um pai desses. Esse, aliás, já foi meio esquecido: um novo cara foi eleito o pai do ano, depois de escrever uma carta, ou melhor, um bilhete. Pode ser mentira? Lógico que pode. Pode ser, muito bem, uma invenção de um cara tipo o David Levithan. Mas e se…? A frase anterior não é só uma pergunta; é, também, um posicionamento comum ao lado da literatura que se presta a imaginar um futuro diferente. Mais ou menos como podemos fazer no presente, adotando uma postura politicamente correta.

Talvez um livro como esse seja apenas um hobbit, tal como Ricardo Tokumoto diz em um pequeno desabafo escrito como complemento a uma de suas tirinhas (o texto completo você pode ler aqui). Mas, hey, a gente já sabe do que os hobbits são capazes…

Enfim, não vou nem falar sobre “politicamente correto” porque é uma palavra que a galera já distorceu tanto que nem vale a pena. Eu acredito que muito dos grandes atos de violência que vivemos hoje nascem de pequenos movimentos à nossa volta, no cotidiano e em nossa criação. De piadinhas e jargões “inocentes” como minas terrestres jogadas num terreno florido. E só resolveremos esses grandes problemas quando nos atentarmos a essas sutilezas venenosas do dia a dia. Tal qual Gandalf escolhe um pequeno hobbit pra ir à luta contra um dragão morando numa montanha.

Voltando ao livro só para arrematar essa discussão com uma nota nada a ver: acho que quem curtiu As vantagens de ser invisível também vai curtir o livro. Eu, pelo menos, vi claramente Ezra Miller, Logan Lerman e Emma Watson interpretando Paul, Tony e Joni, respectivamente. Não entendi a razão para a minha imaginação funcionar assim, mas creio que eles se sairiam muito bem numa adaptação cinematográfica do romance de Levithan.

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Após ler Boy Meets Boy em poucos dias, parti para o segundo livro do autor: The Lover’s Dictionary. Não porque gostei do anterior (se não deu pra sacar: sim, eu curti o BMB) ou porque fiquei fã de livros com corações na capa (é sempre bom lembrar que e-books não servem para enfeitar a estante do quarto), mas pela mesma razão que me levou ao livro anterior: prometia ser uma leitura rápida. Este aqui apresenta uma vantagem nesse sentido, haja vista ser organizado em forma de dicionário – dá pra conferir um pedacinho do livro no site do Kobo e na Amazon.

Tal como um dicionário convencional, o livro é composto por uma série de palavras organizadas em ordem alfabética. No entanto, cada uma delas é acompanhada por pequenos pedaços de uma vida a dois invés de por um significado explícito. A ordem alfabética deixa tudo mais interessante na medida em que impossibilita uma linearidade temporal do texto. Nunca temos certeza total do que ocorreu antes ou depois.

Aliás, não temos certeza total sequer do sexo dos dois personagens principais: o(a) narrador(a)-personagem (I) e o você a quem ele se refere (you) jamais são definidos ou nomeados. Levithan se esbalda nas ambiguidades permitidas pela língua inglesa e sua falta de marcação de gêneros; o máximo que sabemos é que o you em questão já teve encontros românticos com homens.

“Okay. It was a set-up. And the minute I saw him, I was like — the attraction level was in the deep negatives. Like, I’ve seen sexier tree stumps. But of course you can’t say that. I tried to be a better person. Then he opened his mouth and I was completely repulsed. Not only did he talk about himself all night, but he also kept cutting me off whenever I had an opinion about anything. The worst part was: I could see he was enjoying himself! So — God, I’m not proud of this. In fact, I can’t believe I’m telling you this. You promise you won’t think I’m a freak?”

Mentira. Há uma piada relacionada a uma gravidez, que é logo ridicularizada e não parece dar nenhuma dica realmente importante nesse sentido (poderiam ser dois homens, duas mulheres ou um casal heterossexual e a piada continuaria engraçada o suficiente para crack someone up).

“What’s wrong?” I asked.
After a dramatic pause, you said, totally serious, “I’m pregnant.” And then you cracked up.
I laughed even though I didn’t feel like laughing. I raised my Manhattan, tipped it a little in your direction, then asked, “Whose is it?”

Tanta ambiguidade, tanta não linearidade talvez faça parecer que o livro é mais difícil do que realmente é – espero que os trechos selecionados já tenham servido como prova em contrário. Isso aqui não é Faulkner, não é Woolf, muito menos Perec ou Cortázar. O que é difícil, apenas, é descobrir se a história tem um final feliz.

(Eu tenho uma teoria: é. Mas só converso sobre isso com quem já tiver lido.)

Depois de ler ambas as narrativas, restou claro para mim que, se na obra do rapaz falta ambição por um lado (Levithan não parece prometer “alta literatura”, assim como a imagem que ilustra este texto também não deve ter dado a impressão de que se discutiria “alta literatura” por aqui), sobra diversão e um certo otimismo romântico do outro.

E, muitas vezes, é disso que estamos a fim mesmo.

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A Intrínseca finalmente lançou O teorema Katherine (Você se lembra do An Abundance of Katherines que citei lá no comecinho? É bem aquele mesmo…) e nada de eu devorar toda a obra do John Green como me prometi. Por outro lado, já estou quase um especialista em David Levithan: depois dos dois livros que citei nesta coluna, ainda li outros dois, escritos em parceria com Rachel Cohn – a saber, Nick and Norah’s Infinite Playlist (cujo título já tinha inspirado o título do primeiro “TOC do Tuca” escrito para este site – eu só tinha visto o filme na época) e Naomi and Eli’s No Kiss List. Também os comentarei, em momento oportuno.

Vai entender como essas coisas funcionam. Talvez tudo que possamos fazer é, como diz a coluna do Gigio, observar os “itinerários literários”.

  1. A respeito dessa citação, duas dicas. (1.) Vi alguns livreiros revoltados no Goodreads com esta citação. Então, antes de experimentar o que os personagens estão sentindo, certifique-se de que há realmente um show no local e de que você pode mesmo dançar na seção de autoajuda. (2.) A citação faz parecer legal que alguém dance “como um louco”, mas, antes de elogiar uma pessoa dizendo que ela dança assim, certifique-se de que ela conhece a citação e/ou o contexto em que a palavra “louco” foi utilizada. De nada.