Por vezes, sinto um calor na testa. Um feixo pequeno e bem no centro, cortante. Sei que isso é claramente causado pelo laser de um franco atirador que está nas imediações, apenas aguardando o momento perfeitamente irônico e constrangedor para apertar o gatilho que vai acabar com minha existência. Ele me segue há anos e toda vez que estou perto de fazer algo muito legal e relevante, ele aparece e então não tenho outra opção que não parar tudo imediatamente e começar outra coisa.
A Miranda July descreve algo parecido no livro O Escolhido foi Você: “Era como se eu tivesse lutado contra dragões, perdido membros, rastejado por pântanos e agora, finalmente, avistasse o castelo. Eu via crianças minúsculas agitando bandeiras das sacadas; tudo o que precisava fazer era atravessar um campo e chegar até elas. Mas de repente eu senti muito, muito sono. E as crianças não acreditaram quando me viram dobrar os joelhos e cair de cara no chão, de olhos abertos.”
No caso dela, a coisa muito legal e relevante que teve que ser interrompida foi o roteiro de seu segundo longa metragem, “O Futuro”, que narra a história do casal Sophie e Jason no momento em que eles decidem adotar um gato doente que chegará em sua casa nos próximos 30 dias. Ao fazer cálculos e propabilidades, percebem que Paw-Paw pode viver muitos anos e exigir o comprometimento de ambos. Com isso, eles têm apenas esse último mês para realizar todos os seus sonhos.
De certa forma, Sophie e Jason também se encontram no caminho para um castelo (ou na mira de um franco atirador). Sophie quer ser dançarina, mas não consegue parar de ver vídeos no Youtube. Jason não sabe nem o que quer. Pressão. Mas, e então? o que acontece? Esse é o momento em que Miranda July trava na construção do roteiro. A ideia era boa, mas Jason não convencia muito. Aquilo começou a incomodar.
Ao se sentir absolutamente incapaz de finalizar a história, ela começou a ler anúncios do PennySaver, parte de sua rotina de entregar os pontos para a arte de procrastinar, e então decidiu que entrevistaria as pessoas desses classificados. Ela queria saber como era alguém que vendia uma jaqueta de couro preta a U$10 ou Ursinhos Carinhosos por U$4. Como elas passavam seu tempo? Eram felizes? Mais do que tudo, ela queria qualquer coisa para fugir daquele momento em que teria que terminar o roteiro. A reunião dessas entrevistas, somadas a trechos de reflexão da autora sobre os entrevistados e sua própria vida, resultaram na publicação do livro.
Ela mantém seu estilo dramático exagerado e, ao mesmo tempo, bem humorado. Se os seus personagens ficcionais são sempre bizarros, muitas vezes solitários e neuróticos, vemos que os entrevistados reais seguem precisamente essa mesma linha, ou ao menos são traduzidos assim. Gosto de pensar que qualquer um deles poderia ser um conto da autora. Tão reais e, ao mesmo tempo, tão absurdos e peculiares. Talvez essa seja uma das razões para se gostar da autora: a leitura nos permite “achar normal ser estranho”, fazer um drama e depois rir disso tudo.
Outro ponto importante sobre os entrevistados é que eles estavam na versão impressa do jornal, ou seja, tinham em comum o fato de não serem pessoas conectadas à internet. Curiosamente, esse é o único livro que a autora lançou sem que exista um site criativoide dele. Miranda chega a refletir, em certo ponto, que eles são tão diferentes dela que suas vidas não eram feitas para se esbarrar, mesmo dividindo uma mesma cidade. Ao ligar para os anúncios do PennySaver ela quebrou uma barreira: o primeiro é um senhor de 60 anos que está passando por mudança de sexo, após uma vida inteira no armário. Outras duas histórias que também me chamaram atenção foi a de um menino que vendia girinos, com um enorme potencial de aprendizado e de fazer coisas realmente incríveis sozinho, mas não aproveitado pelo sistema de ensino americano. Além dele, um homem em prisão domiciliar, monitorado por tornozeleiras, vendendo kits de pintura para crianças, que fazem a autora relembrar parte de sua adolescência, quando trocava cartas pelo correio com um presidiário.
Além dos entrevistados, o fato dela falar sobre “O Futuro” e outros de seus trabalhos, abre a possibilidade de antigos admiradores enxergarem novas coisas. É como retornar a um museu com um guia. Poder saber como surgiram as ideias, quais eram as intenções da Miranda, os pontos em que ela se sentiu insegura e o que realmente foi filmado no fim é algo muito interessante. Considerava esse filme uma grande ideia, porém o produto final tinha alguns pontos “perdidos”. Agora é possível perceber o porquê e até pensar diferente.
Tanto o meu franco atirador quanto o sono da Miranda July são a sensação de pendência e pressão interna por termos algo que não conseguimos fazer, como uma ideia que não sai do papel, um trabalho que não acaba ou até mesmo aquela interminável lista de filmes e livros que não temos tempo para zerar. Todos nós temos algo do tipo e Miranda July sabe exatamente disso. Muito mais do que uma autora presa a um gênero ou a um meio, ela se mantém curiosa sobre as pessoas ao seu redor, sempre tentando enaltecer suas peculiaridades. Não por acaso, Você é o assunto de suas principais obras. Nos títulos originais: You, me, and Everyone we Know; No One Belongs Here More Than You; Learning to Love You More e agora, It Chooses You.
Aaaah finalmente, tava só esperando tu falar desse livro aqui. Nem comentei isso quando falei desse livro, porque era tanta coisa para falar sobre ele que isso até ficou de lado, mas esse franco atirador teu e esse sono dela também me acometem (vou dizer que, no meu caso, é uma preguiça que se agarra no meu pescoço :P)
O que mais achei legal em todo esse livro é essa importância momentânea que a Miranda dá pra essas pessoas tão comuns e ignoradas. É o tipo de coisa que eu gostaria de fazer com quem tá esperando o ônibus no ponto junto comigo, ou no trem, conversar e saber o que fazem da vida, o que esperam dela, mas que nunca faço porque tenho medo de me aproximar delas. E se elas tentam se aproximar de mim, não aproveito para botar esse plano em ação, mas fico com mais medo ainda – vai entender. Enfim, achei essa forma dela abordar essas pessoas e conseguir continuar arrancando coisas delas mesmo quando tudo parecia chato ou assustador muito inspiradora, ainda mais quando usava isso para encontrar soluções para o trabalho dela ou devanear sobre qualquer outra coisa… Não dá pra dizer exatamente o que no livro é legal, só se sabe que, bem, é legal e ponto.
Não li o livro. Mas quero.
Minha internet deu tanto problema que me esqueci de postar meu comentário por aqui.
No momento estou enviando a resenha para o meu kindle. Não porque seja especialmente longo (a coleção em que ele está armazenado se chama “Artigos longos”) nem porque não o li ainda (pois o fiz), mas porque realmente gostaria de que, sempre que eu quiser, ele esteja a um toque do meu indicador. Da mesma forma que um artigo da New Yorker sobre os irmãos Wachowski e a adaptação de Cloud Atlas. Simples assim.
Gostei muito de conhecer o seu franco atirador. Vê-lo, assim, exposto para quem quiser ver me fez pensar se ele não teria contato com meu franco atirador pessoal. Talvez haja uma confraria de francos atiradores por aí. E tal.
Já tinha mandado um beijo via inbox. Mando outro por aqui. Beijo.
Também quero ler este livro. 🙂