Como foi a sua primeira vez? Onde foi? O que você sentiu? O que pensou? O que foi que te fisgou para sempre? Não, essa coluna não vai virar uma consultoria de sexo. Quero saber qual foi a sua primeira experiência com um livro… Quando segurou um livro pela primeira vez em suas mãos? O que lhe motivou a ter uma biblioteca (grande, pequena, especial…) ou sentir um carinho por uma livraria cheia de lançamentos ou clássicos a serem relidos?
Ao criar alguém desde o nascimento, as “primeiras vezes” viram uma espécie de obsessão. É sobre isso que tenho pensado nas últimas semanas: reviver essas minhas emoções inéditas e ajudar meu pequeno Lucas, de nove meses, a ter suas primeiríssimas experiências. Como foi que virei uma apaixonada por livros, com quase 300 exemplares em casa? Talvez porque, desde sempre, estive rodeada por eles, em casa e na escola.
Minha mãe foi professora durante muito tempo. Além dos livros didáticos de geografia, história e “moral e cívica”, possuía vários exemplares de clássicos da literatura mundial, todos em francês. Foi numa edição bacaninha de O pequeno príncipe que eu fiz os meus primeiros rabiscos com caneta Bic azul. Ela conta que sentiu o coração partir quando viu as páginas repletas de riscos sem nexo feitos pela filha mais velha. Não fui castigada. Mas um pouco dessa decepção se incorporou em mim: até hoje não consigo riscar os livros que leio (nada, nadinha… lápis ou caneta. Leitura terminada e eles ficam sem um risquinho sequer). Há quem diga que aquele que não risca os livros bom sujeito-leitor não é. Ok, e se eu contar que não gosto de pizza? Minha falha com os livros parece menor?
Este, na realidade, foi o estilo de leitura que adotei: sem interferências, sem condução. Ler um livro com anotações de alguém é como visitar uma casa e conhecer todos os cômodos pela apresentação do morador. A verdade é que gosto de bisbilhotar, de descobrir sozinha. Depois posso me encontrar com alguém e fofocar sobre a cor cafona das almofadas, o problema de cupim das esquadrias, o sofá aconchegante, o dossel manchado de mofo, ou o cheiro maravilhoso do jantar sendo preparado na cozinha. Mas antes não.
Quando criança tive professoras fantásticas que estimularam em mim o hábito da leitura. Melhor do que isso: me ensinaram que era mágico descobrir novas histórias em páginas de livros escondidos na biblioteca da escola. A professora Beatriz começou com A borboleta Lilita. Era um teste que, anos depois da primeira série, eu ainda recitava. A professora Grasiela separava um período da aula para que, um a um, fôssemos até a biblioteca escolher um livro para a semana. Li a coleção inteira de Anita. Dois hábitos que conservei até a faculdade: fazer empréstimos e pedir indicações.
Na adolescência, me divertia ao me perder por entre as prateleiras, procurando títulos inusitados, sem me importar se eram adequados para a minha faixa etária. Assim, li Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres, de Clarice Lispector; O velho e o mar, de Ernest Hemingway; e A metamorfose, de Franz Kafka.
Para trabalhar com livros, conservar o hábito da leitura é uma questão de sobrevivência. E descobrir livros que tirem o seu fôlego de leitor virou uma questão de amizade: tenho amigos só para essas indicações. Amigos especiais que trocam a indicação de um livro “foda” pela indicação de outro livro “foda”. Tenho três amigos assim (que são praticamente minhas almas gêmeas literárias. Não pode ser menos do que isso). Fazemos a nossa “cerimônia de indicação” duas vezes por ano. Às vezes entro em crise de abstinência e peço por indicações nas redes sociais. Mas sem garantias de experiência avassaladora.
Acho que, no fim das contas, é isso que procuramos: histórias que nos tirem do nosso mundo, que desliguem temporariamente a realidade, o nosso “para o mundo que eu quero descer” em 120 ou 240 páginas. Essa é minha nada simplória e totalmente complicada missão com o meu filho: passar um pouco do que eu sinto quando leio um livro.
A nossa primeira leitura foi com 15 dias de vida. Não resisti. Sei que ele não entendeu nada. Mas eu contei a história mesmo assim, com bichinhos que se encontravam na floresta para uma festa sensacional (inventei tudo, claro). Com três meses, ele já começou a prestar atenção, e queria pegar o livro e ver o barulho que as folhas faziam. Com seis, passou a ouvir com atenção aquela narrativa maluca que ligava objetos sem a mínima conexão (figuras enormes de “livros de palavras”, mas eu seguia contando no formato de história). Hoje, é possível perceber qual livro agrada mais o meu pequeno leitor. E leio um, dois, três, e ele permanece atento. Mas o mais interessante de tudo é que o meu exemplo é a mais forte das influências: ele me vê lendo um livro, cheio de letras (sem imagens coloridas, sem fontes em tamanho chamativo) e quer saber o que é, mexer, fingir que lê.
Acho que estou no caminho certo. Mas apenas acho. Afinal, essa maternidade também é minha primeira vez.
Na Página 28 de Satolep, de Vitor Ramil:
“Já vi um anoitecer límpido de verão na Praia do Laranjal. Céu azul-marinho, lua cheia, branca e luminosa junto à Lagoa dos Patos. Uma moeda na areia grossa, formigas miúdas, folhas de figueira, tudo era aparição. O grito das crianças e o latido dos cachorros podiam ser tocados. Vi também o anoitecer de outono e de primavera. Mas é um anoitecer de inverno como o da noite com que iniciei este relato que simboliza o anoitecer em Satolep. A luminosidade caía à medida que o bonde avançava. A névoa que eu vira rasteira pelos campos começava a emanar do fundo das ruas, por todos os lados, simultaneamente. Satolep inteira era a emanação de um imenso banhado. ‘É hora de suas almas saírem a passear’, dizia o Cubano, ao me mostrar como as pessoas eram, aos poucos, envolvidas pela cerração.”
Lu, só imaginei tu contando uma história pro Lucas e: maior cena de amor do mundo <3
Acho que já contei essa história várias e várias vezes, mas o livro que mais me marcou na infância foi Duendes e Gnomos, da Heloisa Prieto, que encontrei sem querer na biblioteca da escola e fiquei ~matando aula~ de matemática para ir lá ler até terminar (nunca conseguia pegar esse pra levar pra casa, parece que escondiam ele de mim no dia de ir na biblioteca hahaha). Marcou mais porque foi o primeiro livro com mais letras que desenhos que li (se na época não conseguia pegar o livro, hoje tenho meu exemplar próprio e autografado!).
Não tive esse mesmo estímulo para a leitura, infelizmente. Gostaria muito de ter tido, não que isso fosse mudar muito eu como leitora, mas acho tão lindo ver crianças recebendo um incentivo animado de professores e pais para lerem, pegarem um livro na mão sem medo. Bate meio que uma depressãozinha pensar que muitas crianças não passam por esse tipo de experiência porque a escola pouco incentiva, os pais também não leem… Mas enfim, sempre surge um leitor tardio do nada mesmo o/
Tua coluna tá muito boa, mulé!
Obrigada, querida! E, sim: também considero esse estímulo à leitura a maior lição de vida que podemos dar a alguém. Muda tudo! <3
Beijos!
Que sorte do Lucas! 🙂
Por enquanto, Thainá, a sortuda sou eu. O Lucas é um anjo na minha vida! 😀
Meu maior medo em ter filhos é não conseguir transmitir essa paixão pela leitura, essa fome por cinema, essas coisas que com certeza me fazem mais apaixonado por tudo que faço. Parabéns, mamãe Lu, o caminho está trilhado =D
Acho que é um trabalho diário, Pips. E, pelo menos, vou tentando até ele se manifestar, demonstrando se realmente gosta ou não. De música, eu sei que ele gosta muito. CD preferido: The 2nd Law, do Muse. 🙂
Minha irmãzinha gostava de Radiohead quando pequena. Hoje curte Hannah Montana =P
Sim, Pips. Isso acontece. Mas, um dia, ela vai lembrar do Radiohead de alguma forma. Tenha fé. Também precisamos respeitar as fases (ou achas que não rola Backyardigans aqui em casa?). 🙂
Lu, enchi os olhos d’água. Emocionada sempre com os teus textos. Feliz por você, por esta experiência linda que é criar uma criança, educá-la. Lembrar da tua família e de o quanto sempre incentivaram você e teus irmãos. Lembrar da minha família que também sempre me incentivou. Cultura e educação são tudo de bom! Parabéns pelos textos. Não perco nenhum. Beijos!
Oi Ju! Obrigada pelo elogio! Esse incentivo é essencial. É a formação de uma nova história de vida, que eu quero abraçar e apoiar com todas as minhas forças. Beijo grande, amiga!
Adorei teus texto e fiquei até emocionada com esse amor pelo Lucas e imaginei a cena. Desejo, de todo coração, que ele se crie vendo, lendo, manuseando e rabiscando livros, sempre acompanhado e orientado por ti. Que Deus abençõe e acompanhe iluminando e cuidando vocês sempre. Bjo grande.
Obrigada, Carmem! Bom saber que estás sempre por perto, mesmo que virtualmente! Um grande beijo nosso!
Obrigada, Carmem! Bom saber que estás sempre por perto, mesmo que virtualmente! Um grande beijo nosso!
Ótimo texto! Quem ama livros se identificou prontamente.