Antes do Leandro, revisor-salvador da agência onde eu trabalho – e quem trabalha com publicidade sabe a loucura dos horários e dos jobs para ontem –, construí vínculos quase inquebráveis, além de acreditar cegamente, com grande parte dos revisores que passaram pela minha vida. Tive diversos parceiros a quem confiava meus erros gramaticais e de sintaxe, meus textos mais íntimos e os poucos profissionais.
A primeira revisora “oficial” que tive foi Marcia Melo, mãe de uma amiga. Marmelo – como ela se autodenomina-, tem vasta experiência em editoras e é detetive profissional na caça de erros em textos alheios. Casou duas vezes e teve uma filha em cada matrimônio. Eu nunca soube muito sobre o primeiro, mas aprendi muito sobre o segundo – uma história de amor digna de um romance trágico quase machadiano. E, enquanto suas filhas moravam junto dela, apelidou sua casa de Melosfera.
Nos tempos em que frequentei a Melosfera, lá pelos idos de 2006, me indicaram Hemingway, Zola, Gabo, e insistiram para que lesse Tutameia, de Guimarães Rosa. Era quase uma sitcom cheia de referências à literatura. Certa vez, Marcia anunciou na sala: “Agora só falta o martelo”; as duas filhas comemoraram, e eu fiquei a ver navios até me cochicharem: “Marcelo, Marmelo, Martelo”. A matriarca estava namorando um tal Marcelo. Na mesma época, comecei a me aventurar mais no mundo das letras e a escrever crônicas, contos e pequenos textos, todos eles devidamente corrigidos por Marcia.
Foi graças a essa curta parceria, encerrada em 2008, que aprendi um pouco sobre curadoria nos meus próprios textos: tomar cuidado com palavras que uso com menos frequência, reler algumas frases e estuprar as entrelinhas, isto é, não deixar de escrever uma sentença por vergonha do que os outros interpretarão. “Vou dar uma olhadinha”, e nunca era uma simples olhada, pois sinônimos surgiam – “arguto”, “feérico” e figuras de linguagem eram incorporadas aos meus textículos –, substituições e cortes eram aplicados, mas tudo, tudo mesmo, era explicado como se fosse numa aula. A mensagem tinha de ser passada; se era clara para o leitor ou não, pouco importava, contanto que o português fosse respeitado dentro do contexto.
O fim da parceria ocorreu à época em que comecei, junto com várias pessoas, a montar o que seria um blog de resenhas de literatura, e foi quando notei o quanto fazia falta um revisor em tempo integral. Ao reler os textos, após meses, muitos erros banais eram gigantescos e grotescos, como uma gastrite ao se tornar uma úlcera. Os visitantes do blog não nos dariam credibilidade. Por muito tempo, demorei para saber que mesmo o mais apurado escritor comete deslizes básicos. Ninguém consegue se editar por inteiro. Apesar de nunca ter outro revisor como a grande Marcia, fiquei feliz por todos aqueles que me ajudaram nos anos seguintes: Rossana, Taize, Gigio. Colocar vírgulas onde eu acreditava ser lenda, consertar tempos verbais e, acima de tudo, lembrar do maravilhoso acordo ortográfico – crase não é preciso citar –, é quase como o nêmesis de qualquer jovem aventureiro no mundo das letras.
Mas algo faltava e, mesmo não sendo geminiano – o eterno insatisfeito –, percebi que as simples revisões não completavam meu âmago de pseudoescritor. Era necessária uma figura que eu acreditava ser apenas o chefe de Clark Kent nos quadrinhos: o editor. Por mais apurados que fossem os revisores, eles não cortavam a prolixidade intrincada dos textos, o excesso, a gordura. Com certeza deixavam o texto apresentável e bonito, até com um gel no cabelo, mas não o deixavam atraente e sóbrio. Aos poucos comecei a exercer esse papel de editor nos textos dos outros, até encontrar minha própria editora – Tayara, aqui do Posfácio -, aquela que puxa minha orelha para frases longas, cheias de vírgulas e sem pontos finais, cortando a saturação de sinônimos e a impregnação de subtextos.
O trabalho de Marmelo faz mais sentido nos dias atuais, pois não era apenas a revisão, era todo um trabalho apurado de ler, reler, entender, substituir o necessário e cortar o desnecessário. Se hoje sou editor, e não revisor, deste espaço, é graças às pessoas que me ajudaram a enxergar muito bem como essa profissão – nem me venha dizer que é um simples cargo – é importante e como ela pode ser um guia para transformar um texto em um grande artigo. Ironicamente, ser aprendiz de editor tem uma grande desvantagem: nenhum texto está realmente bom.
A Polícia da Revisão está de olho e pode aparecer quando você menos espera.
Espero que do plágio também.
Sim, capitã Camila tá fazendo a ronda.
Experiências como essa são, realmente, muito interessantes. Tenho vivido as minhas e é bom ver as suas compartilhadas.
Nussenhora! Posso ficar vremeia? O conhecimento, quando não é passado pra frente e aplicado na própria vida, não serve para nada. Andei e ando nessa trilha com absoluta convicção. Mas sou seletiva, não se engane, Pips! Não se ensina nada a quem não quer aprender. Segundo Clint Eastwood, na letra de Gran Torino, “your world is nothing more than all the tiny things you’ve left behind” – para o bem e para o mal, acrescento, com o devido respeito. Sobre mim, obrigadíssima. Sobre você, parabéns pela prosa. Este seu texto memorialístico, bem escrito, melódico comprova um aprendizado muito além da forma. Um beijo.
Pequena correção. Eu jamais disso isto: “se era clara para o leitor ou não, pouco importava, contanto que o português fosse respeitado dentro do contexto”. Da mensagem, o leitor é o parceiro inquestionável, depois da solidão e do exorcismo, por meio da escrita, do diabo que se apossa do autor. Mesmo dentro da norma culta, a parceria não vinga sem a adequação da linguagem ao público a que se destina, oxente! Mais um beijo.
Sofrendo de criptomnesia nessa idade! Eu, claro.
AE, obrigado pelo reconhecimento neste dia do revisor! (não? ah tá)
Muito bom ver a sua coluna de volta, Pips! Normalmente acharia muito chata uma história pessoal como essa, e eu mesmo não seria capaz de algo parecido, mas você tem talento pra coisa, continue assim. ^_^
Auf Wiedersehen!
Para quem trabalha com escrita, todo dia é dia do revisor.
Obrigado por criticalogiar uma coluna tão pessoal. Uma história guardada há anos, mas que precisava vir a luz.
Que texto meigo, meu Deus! =)
Revisores são o que os Grammar Nazis não conseguiram ser. CHUPEM, GRAMMAR NAZIS.
hahaha, juro que quando o reli não pensei na palavra meigo. Como a vida é.
Muito legal a homenagem!!
Eu discuti sobre o trabalho de editor com a Vi, que fez um vídeo sobre isso no youtube.
Como eu acho difícil essa profissão, saber aonde picotar o texto do escritor sem que isso interfira na sua forma de criação/história. Mas, sem dúvida,ajuda bastante =)
Oi Luh, o bom editor não é aquele que picota o texto é aquele que sabe o que funciona e o que não funciona. Picotar soa meio invasor, eu diria que ele enxuga.
Como já diria Tom Jobim, em uma frase obviamente adaptada: “O texto a gente não termina: entrega.” Ele se referia, no caso, à música. Mas sempre uso nesse contexto. Encaixa.
Muito bom texto, Pips. Ser editor dos próprios textos é dos desafios mais complexos da vida. É bom ter alguém em quem confiar para mudar só o necessário – afinal, editor ruim tem aos montes, trocando seis por meia dúzia a torto e a direito. O bom editor edita sem deixar marcas ou rastros. É aquele que deixa o texto com a cara de quem o escreveu, e não de quem editou (o que, infelizmente, é quase só o que acontece).
Sorte a sua 🙂
Maira, eu sempre tive muita sorte com editores. Muita sorte mesmo. Não alteravam tanto os textos, nem me desmotivavam – e acho que o principal trabalho do editor, além da função “natural”, é conseguir guiar para o texto sair da forma como o autor planejou e não conseguiu.
Muito bom o texto. Me deu até um certo arrependimento de brigar tanto com os editores que passaram pela minha vida.