Se você já leu alguma notícia do tipo cientistas buscam fator genético para a infidelidade, então provavelmente já teve contato com o trabalho de E. O. Wilson. Durante a década de 70, quando a psicologia era dominada por explicações baseadas na maneira como as crianças eram criadas, Wilson ajudou a lançar a sociobiologia (de que mais tarde derivou a atual psicologia evolucionista), campo que procura estudar de que modo mecanismos evolutivos poderiam dar origem a comportamentos sociais complexos, como a competitividade e a infidelidade. Duas vezes ganhador do prêmio Pulitzer de não ficção e considerado o maior especialista mundial na mirmecologia (o estudo das formigas), Wilson retorna agora em A conquista social da Terra com novas ideias controversas – e possivelmente revolucionárias.
O projeto de A conquista social da Terra é ambicioso. Desde o primeiro capítulo Wilson descarta todas as explicações da religião e da filosofia para propor que apenas a ciência está em condição de responder a estas duas questões essenciais: O que somos? De onde viemos? Em suas palavras, “existe uma história da criação real da humanidade, e somente uma, e não é um mito”, e, para entendê-la, faz-se necessário acima de tudo compreender os mecanismos que produziram a vida social avançada, do que poderemos entender então a natureza da condição humana.
Os primeiros capítulos, portanto, são dedicados à exposição da maneira como o homem moderno se desenvolveu a partir dos macacos antropoides que habitavam as savanas africanas de milhões de anos atrás. Embora esse seja um trajeto recontado em muitos outros livros, Wilson alia o que existe de mais recente nas pesquisas científicas a uma grande habilidade narrativa, o que faz desta uma das partes de maior destaque no livro.
Além de refazer passagens essenciais dessa evolução, que envolvem o surgimento do bipedalismo e a descoberta do fogo, Wilson ressalta um ponto que, segundo ele, pode não ter recebido até agora a atenção necessária, que é o surgimento de um ninho comunal. Um passo essencial ocorre, ele explica, quando os indivíduos passam a compartilhar uma base comum, a partir do que uma tendência inicial à divisão social do trabalho, com alguns indivíduos realizando a defesa do ninho, outros buscando alimentos, etc, pode progredir naturalmente para a formação de instintos sociais mais avançados.
Algumas ideias chave dessa primeira seção são em seguida reforçadas pela comparação com outras espécies eussociais. Wilson constrói ótimos exemplos a partir do mundo dos insetos – sua grande especialidade –, mas não deixa de trazer à baila também outros animais cujos hábitos sociais foram descobertos apenas mais recentemente, como os ratos-toupeiras-pelados. Esses outros casos de vida social, ainda que não tão avançada, são importantes, como Wilson explica, para que se retire o viés introduzido pelas colônias de formigas e abelhas, em que os machos herdam 100% do material genético das mães e todas as fêmeas compartilham, em média, 3/4 dos genes.
O que está em jogo nessa discussão é acima de tudo a explicação de um aspecto da nossa natureza que tem desafiado a psicologia há décadas (e a filosofia há muitos séculos antes disso): o comportamento altruísta. Numa explicação baseada na moderna teoria evolutiva, em que os genes são tomados como o nível essencial em que opera a seleção natural, não parece haver espaço para um comportamento que prejudica o indivíduo, e consequentemente seus próprios genes, em benefício da comunidade. A teoria mais aceita hoje, chamada de seleção de parentesco, procura explicar o altruísmo a partir da análise do benefício proporcional que um altruísta dá a seus irmãos e primos, com os quais, evidentemente, compartilha boa parte do patrimônio genético. Dessa forma, por exemplo, a proporção de 3/4 nas formigas e abelhas seria uma característica fundamental para favorecer a emergência da eussocialidade.
O próprio Wilson participou da propagação da teoria da seleção de parentesco durante as décadas de 60 e 70, por isso teve grande impacto na comunidade científica a mudança de perspectiva apresentada em A conquista social da Terra, e confessada discretamente em uma das notas de capítulo:
Na década de 1970, fui um dos cientistas que promoveram a seleção de parentesco como central à origem da eussocialidade e evolução humana, em Sociobiology: The New Synthesis e On Human Nature 1. Acredito agora que eu estava errado no grau em que a enfatizei.
Wilson não descarta completamente o efeito da seleção de parentesco, mas pretende agora endossar uma nova teoria, chamada seleção multinível. Nela, além da seleção natural no nível do indivíduo, deve ser levada em conta também o efeito da seleção no nível do grupo. Duas tribos diferentes dos nossos ancestrais primitivos, por exemplo, ao entrarem em competição, se não diretamente ao menos quanto à eficiência de coleta de alimentos, defesa do ninho, etc, poderiam favorecer a emergência de indivíduos em que a cooperação para a sobrevivência geral fosse mais forte.
É importante, no entanto, ressaltar que a nova teoria endossada por Wilson não deixa de ter seus opositores. A discussão entre qual seria a explicação mais apropriada avança, nesse caso, para uma profundidade que está além das obras de divulgação científica, para o estágio em que diferentes grupos de cientistas disputam entre si através de artigos em revistas de primeira linha. Uma disputa bastante técnica, em que a principal acusação, de ambos os lados, parece ser a de que os modelos matemáticos dos opositores são inconsistentes para a produção da estabilidade do altruísmo ao longo das gerações.
Talvez o principal defeito de A conquista social da Terra apareça justamente aqui. A postura de Wilson, que argumenta durante todo o livro como se a seleção de parentesco, aplicada isoladamente, estivesse completamente desmentida, chegou a irritar a comunidade dos biólogos evolucionistas, provocando até uma resposta liderada por Richard Dawkins, intitulada A queda de Edward Wilson.
De fato, na continuação do livro, após ter apresentado os mecanismo da seleção multinível, Wilson passa a invocar uma série de exemplos de pesquisas recentes, as quais ele assume como reforços para a sua posição. Não há, no entanto, uma análise crítica dessas pesquisas, de modo que o leitor não se vê em condições de escolher outro lado que não o da aquiescência.
Por fim, nos últimos capítulos, Wilson retoma sua proposta inicial e, tendo já cuidado do “de onde viemos?” passa ao “o que somos?”. Para isso ele retoma e concilia muitos de seus argumentos de obras anteriores, mostrando como atitudes sociais complexas dos seres humanos poderiam emergir da seleção natural multinível. Em geral, seguindo sua nova perspectiva, ele explica como as características mais negativas da nossa natureza, como o instinto de violência e o egoísmo, evoluiriam a partir da seleção no nível do indivíduo, enquanto os aspectos mais positivos, como o altruísmo, seriam favorecidos pela da concorrência entre grupos.
A conquista social da Terra não é apenas uma obra de divulgação científica (no que sua relevância é inquestionável), mas também um livro de conversão. Sua tese principal, de substituição da seleção de parentesco pela seleção multinível, ainda é minoritária, por isso impressionar a opinião geral, e possivelmente alguns futuros cientistas, certamente pode ajudar a propagar sua causa. No entanto, assim como outras célebres mudanças de opinião no mundo científico, como a de Einstein e sua constante cosmológica, somente daqui a muitas décadas poderemos dizer se esse foi um enorme passo falso de E. O. Wilson ou o início de uma grande transformação.
- Edição brasileira: Da Natureza Humana. São Paulo: T. A. Queiroz, 1978 (conforme informação da própria nota) ↩
Excelente ,Gigio! Não tinha conhecimento desse lançamento e adquiri o livro devido a lucidez de sua resenha.
Obrigado, Sammy! Com certeza valerá olhar o livro daqui a 10 ou 20 anos e pensar: afinal, ele estava ou não certo? 🙂
Parabéns pela resenha, Gigio, acho que tu soube sintetizar a ideia central do livro de maneira notável.
Acho essa ideia de multinível muito interessante, porque considera uma variável conhecida sob um novo grau de ênfase. Independentemente, como você bem notou, de essa teoria se sustentar ou não – agora ou depois -, ela abre um precedente muitíssimo interessante, justamente esse do fator comunal como agente condicionante da evolução e dos comportamentos.
Mas, por convicções pessoais, epistemológicas e filosóficas, e, também para estimular o debate, tenho de manter-me cético com relação à proposição de Wilson, bem como permaneci cético com a de Dawkins quando li ‘O gene egoísta’. Me sinto verdadeiramente pisando em ovos ao adentrar na seara da genética e da biologia, mas não consigo enxergar tamanho protagonismo nos genes, especialmente nos seres humanos.
Quanto aos demais animais, eu até posso aceitar e achar bastante plausível a coisa toda, mas com seres humanos não dá para querer teorizar nesse nível de generalização. Seja pela teoria do parentesco, seja pela do multinível, ainda assim acho que a historicidade de cada caso tem que ser objeto de profunda análise. Vocês podem falar que eu estou sendo bairrista ou querendo puxar a sardinha para o meu lado – e talvez haja algo de verdade nessa acusação -, mas eu não consigo conceber seres humano nesse continuum abstrato, sem pesar especificidades que são inescapavelmente sociais e históricas. Não é determinismo, de maneira nenhuma, é a condição humana enquanto seres essencialmente sociais e, antes disso, seres cognoscentes.
Desse modo, encontrar uma suposta ‘natureza’ humana ou tentar generalizar a forma como os seres humanos ‘evoluem’ é uma jornada que vai, a meu ver, resvalar inevitavelmente nessas considerações.
Espero ter-me feito entender e não pagar de chato de plantão. Aliás, gostaria realmente de debater essa questão.
Valeu, Lucas! Estou sempre disposto a uma boa discussão, vamos ver se conseguimos tocar alguma coisa…
Acho assim, em um nível, o papel dos genes hoje é praticamente inquestionável. Seria assustador pensar isso há 100 anos, mas agora já se sabe, por exemplo, que pelo menos 50% da personalidade é determinada pela genética. Timidez ou extroversão, tendência a se arriscar e desbravar novas situações, introspecção, são todos exemplos de características altamente determinadas geneticamente. Significa que se você fosse criado aqui ou na China, em uma família pobre ou rica, de baixa instrução ou erudita, teria mais ou menos as mesmas inclinações de personalidade. Mas claro, os outros 50% ainda podem mudar muita coisa.
Em outro nível, quando passamos para uma visão mais geral, dos movimentos históricos, aí fica difícil mesmo explicar as coisas de maneira tão estatisticamente clara. Tem aquele outro livro bem famoso, “Armas, Germes e Aço”, que argumenta que a colonização do resto do mundo por povos oriundos da região da Europa ou do Oriente Próximo, era praticamente inevitável, baseado apenas na distribuição dos continentes e dos recursos naturais. Esse já é um argumento bem mais contestável, além de que só explica as coisas até certo ponto. Toda a complexidade das interações culturais dos povos modernos acaba ficando para os capítulos que viriam depois do fim do livro.
Por exemplo, será que uma guerra causada pela Coreia do Norte está determinada na história? Até que ponto? Por um lado poderíamos falar das tendências inatas à agressividade, à conquista territorial, à criação de um estado de coisas em que um único homem manda em toda uma nação, etc. Mas até que ponto isso explica a vida de cada pessoa, desde o Kim Jong-un até o camponês mais simples do país? Existe esse gap entre tendências claramente genéticas e um estado real muito mais complexo das coisas, que é difícil, se não impossível de explicar. Os estudiosos às vezes se socorrem em estatísticas, em um determinismo probabilístico, se diria, mas o que isso realmente quer dizer? Por exemplo, no último Sabático, na entrevista, o Steven Pinker disse que a chance de acontecer uma guerra de proporções consideráveis (com mais de um milhão de mortes) na próxima década seria de 9,7%. Por um lado, não temos como dizer a decisão que cada indivíduo tomará, por outro, tomadas todas as decisões em conjunto, podemos dizer que existe 1 chance em 10 de que uma sequência de decisões leve a mais de 1 milhão de mortos.
Mas estou me adiantando demais. O que exatamente te incomoda nesse protagonismo dos genes?
Abraço,
Gigio