Praga ficou feia (p.229)

 

Em meio aos canhões soviéticos, durante a tensão política, no ápice de uma Primavera histórica, um casal tenta suportar a vida, sobrevivendo de um amor pesado e doloridos pelo fardo de existir. Assim é o intocável romance de Milan Kundera 1, best-seller mundial que há quase trinta anos encanta, angustia e polemiza o mundo literário.

Na Praga da virada das décadas de 60 e 70, Tereza e Tomas, apaixonados, tentam partilhar a vida. Ela, uma ingênua obstinada e traumatizada, revela em seus pesadelos as inquietações de uma alma doente. Ele, um médico engolido pelo próprio ego, escravo de seus desejos, adoece de amor – um amor que nunca consegue demonstrar completamente. Entre eles a deusa Sabina, arquétipo feminino, símbolo do sexo, da fugacidade, transitoriedade e talvez até superficialidade da vida. Também entre eles Karenin, não o marido de Anna da Rússia, mas um cachorro que simboliza a família, o laço de união, a normalidade e, sobretudo, a morte.

A moldura em que essa história se constrói chama-se Milan Kundera, o escritor-filosófico tcheco que recentemente (dia 1°) completou oitenta e quatro anos. Romântico, demasiado romântico, Milan utiliza nesse livro temas piegas e ferramentas kitschs para construir um narrativa apaixonantemente kitsch e firmar o uso corrente desse termo. Segundo o autor, o kitsch é “a negação da merda” (a merda como um conceito quase teológico), a maquiagem social que esconde nossa imperfeição, nossa impureza, hipocrisia, enfim, nossa merda.

Mas nem só a merda e o kitsch fazem esse livro; como a vida é pesada, Kundera recorre a Nietzsche, e para tratar de amor e política, além de revelar sua própria biografia, utiliza-se da filosofia do Eterno Retorno.

 

No mundo do eterno retorno, cada gesto carrega o peso de uma responsabilidade insustentável (p.11)

 

“Einmal ist Keinmal” (“Uma vez é nunca, uma vez é nada”). Até que ponto a dor de Tomas é a dor de Kundera? Uma vez é nada, mas nessa vida aparentemente única, em que não há espaço para ensaios ou correções, Kundera revisita seu passado através de seus personagens e de sua construção ficcional e vive novamente retalhos de sua vida. A arrogante displicência de Tomas o obriga a abandonar Praga, a cidade que pesa em seus ombros mas talvez a única que aguenta o seu peso. Já Kundera, pressionado pelo regime comunista pós-Primavera, foi refugiar-se na França e viver da nostalgia, do sucesso literário e, provavelmente, também da leveza insustentável.

Impregnado por essa nova realidade, o autor construiu uma obra sobre destino, sobre uma vida esvaziada ou até mais: sobre a incapacidade de preencher totalmente a vida, impossibilidade de viver todas as paixões ou de sustentar facilmente a leveza.

 

O drama de uma vida pode ser explicado pela metáfora do peso. Dizemos que temos um fardo nos ombros. Carregamos esse fardo, que suportamos ou não, lutamos com ele, perdemos ou ganhamos (p. 121)

 

Tereza desembarca na vida de Tomas com uma mala “grande e infinitamente pesada”. “Ela havia posto sua vida naquela mala e guardara na estação antes de oferecê-la a ele”. Tomas, incapaz de reconhecer o amor, desconfia que seus sentimentos sejam artimanhas de um coração dissimulado que quer amar mas não consegue, e assim passa a vida amando sem amar. Passa a vida buscando o amor de quem não ama, e através de casos extraconjugais tenta apreender “o milésimo de dessemelhança”, a alteridade que comprova algo além de si mesmo. Ainda assim, mantém-se vazio, pois essa ínfima parte apreendida de suas amantes não lhe é compatível, talvez só Tereza com seu peso e amor pudesse realmente preenchê-lo.

“Embora se amassem, criaram mutuamente para si um inferno”. A relação Tereza e Tomas se sustenta pelo peso, se sustenta pela dor, se sustenta até mesmo pelo turbilhão político. “Só é grave aquilo que é necessário, só tem valor aquilo que pesa” – e talvez por isso a leveza de Sabina, a mulher do chapéu-coco simbólico, não sustente a paixão de Tomas e assim escapa às mãos, torna-se história, finda.

O autor dá bom tratamento às suas personagens – mesmo que não concordemos com seus destinos –, inicia novas tramas no momento certo e concatena as histórias de forma interessante, alternando o foco narrativo em determinados fragmentos de capítulos através do ponto de vista dos diferentes personagens. Já suas metáforas talvez sejam excessivamente explicadas, tirando do leitor o esforço de interpretá-las e digeri-las. Entendo, contudo, que talvez para Kundera a Literatura tenha o propósito de servir também a uma posição filosófica. Assim, em algum momentos, A Insustentável Leveza do Ser parece um esforço literário de um filósofo por natureza.

Uma espécie de prosa-musical-filosófica, o romance dosa igualmente as divagações subjetivas e  conflitos políticos, o ritmo e a música, fazendo de cada um instrumento de uma orquestra que toca o “concerto da vida”. A musicalidade do outrora músico Kundera dita o compasso narrativo, seu senso musical e a metáfora da vida como um concerto enchem as linhas de beleza e o “Es muß sein!” do Quarteto de Cordas n° 16 de Beethoven ressoa em nossa alma e destrói nosso kitsch intrínseco.

Carregar o leitor através dessa jornada existencial é desafiá-lo, é questionar suas forças, mas sabemos que muitos leitores aceitaram o desafio e mergulharam no universo de Tereza, Sabina e Tomas.

Tanta profundidade e sucesso levaram a obra de Kundera às telas de Cinema, numa adaptação de 1988 com direção de Phillip Kaufman, tendo Daniel-Três-Oscars-Day-Lewis como Tomas, a linda Lena Olin como Sabina e uma jovem e adorável Juliette Binoche como Tereza.

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O trabalho de Kaufman em parceira com Jean Claude Carrière fez Praga ficar feia também no Cinema. A transposição da narrativa foi  feita com qualidade e respeito à obra e embora alguns detalhes tenham sido ceifados – como o filho de Tomas e a mística e neurótica relação de Tereza com o espelho –, os cortes foram compensados pelo tom certeiro na construção da aura do filme, muito semelhante a que as páginas da narrativa transportam o leitor.

Alguns conceitos foram transportados com inegável qualidade, como o da “amizade erótica” de Tereza e Sabina referida pelo autor e tão visível na sequência de fotos e encontro mais importante entre as duas.

As curiosidades da produção ficam por conta das referências bergmanianas: além da participação de Erland Josephson, um dos atores mais fiéis do sueco-pesado, a direção de fotografia é assinada pelo lendário Sven Nykvist, oscarizado por Gritos e Sussurros (1972) e Fanny e Alexander (1982) e indicado por esse trabalho. Além disso, a trama ainda ganha outro toque de Bergman com o tiquetateio do relógio, que intensifica a inquietação e voracidade de Tomas e marca a fugacidade da vida.

Enquanto Binoche está verdadeiramente adorável, bela, transparente em sua sensibilidade ingênua e dor profunda, Day Lewis faz um Tomas um pouco forçado, beirando o incômodo, para surpresa de todos que se acostumaram com sua perfeição técnica. Já Lena reproduz a deusa Sabina, umas das mais vigorosas personagens femininas da Literatura, da forma como a personagem merecia.

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Através das três centenas de páginas de uma densa narrativa que incita reflexão e mexe com sentimentos, e por um filme longo e difícil que é fiel à complexidade da história original, A Insustentável Leveza do Ser ganhou status que cult contemporâneo, passagem obrigatório para os que caminham pela Literatura e até mesmo no Cinema.

Verdadeiramente um jorro de amor e fúria, coroado pelo pensamento filosófico e pelo pendor romantizado de um autor colossal.

11 (isso é leveza)
A leveza e o peso – qual deles podemos suportar?
  1. Dedicado a @Bazzzoca que é Team Kundera desde pequena, será até a morte e também nas vidas futuras