O Renascimento foi um dos acontecimento cuja repercussão no pensamento da humanidade é sentida ainda hoje. Embora certamente não haja consenso com relação ao grau de influência que o desenvolvimento da civilização renascentista teve para nosso pensamento atual e sua tortuosa trajetória histórica, certamente impera o reconhecimento de que, seja qual for seu peso, o Renascimento não pode ser ignorado como processo histórico formador do mundo moderno em diversos aspectos.

O historiador suíço Jacob Burckhardt (1818-1897) foi daqueles que não conseguiam enxergar os eventos ligados ao Renascimento como algo menor na história da humanidade, motivo pelo qual percorreu a Itália e mergulhou profundamente nos resquícios daquele tempo – a arquitetura, a literatura, a pintura, as ideias, as esculturas, os anais políticos, etc. –, procurando trazer a lume o que a cultura do Renascimento teve de sui generis, aquilo que constitui sua peculiaridade, sua marca mais contundente e mais emblemática.

Tal louvável esforço resultou, entre outros escritos, naquela que é considerada sua obra prima, A cultura do Renascimento na Itália. Nesse livro, Burckhardt traça algumas linhas interpretativas acerca do Renascimento, as quais, pavimentadas por ele e por outros estudiosos do tema posteriormente, constituíram-se nas vias pelas quais se costuma abordar esse período e as transformações que nele tomaram lugar.

Não bastasse a fortuna crítica da obra enquanto estudo sistemático e profundo sobre o Renascimento no campo da História Cultural – da qual ele, aliás, foi um dos pioneiros –, A cultura do Renascimento na Itália mostrava em seu subtítulo a humildade que o pesquisador deve assumir diante da vastidão do tema: trata-se de um ensaio e não de uma obra que visa abarcar a totalidade daquele processo histórico. Apesar disso, é preciso reconhecer que Burckhardt estabeleceu algumas chaves analíticas poderosas e duradouras – tais como o desenvolvimento do Estado moderno, com Maquiavel, e o surgimento do indivíduo, por exemplo –, as quais mostram como sua perspectiva de abordagem não busca contemplar somente as artes, mas o mundo renascentista em algumas de suas várias e fascinantes dimensões.

O Renascimento ocupa um lugar muito especial em sua relação com o mundo moderno. Estando no limiar da Idade Média, cujo pensamento fora marcado pela hegemonia religiosa católica, o pensamento renascentista encontrou no contraste com aquele período uma de suas mais potentes fontes de vigor. Esse contraste, entretanto, mais do que um simples negativo, era também um movimento que se estendia mais ao passado, levando o homem renascentista rumo à Antiguidade clássica, especialmente à Grécia e a Roma, cujas culturas profundamente distintas do pensamento medieval embalaram o questionamento dos novos tempos.

A tradição da Antiguidade clássica tornou-se um vivo repositório de valores e de inspiração para os pensadores renascentistas. Todavia, como nos alerta Burckhardt, “(…) o Renascimento não significa imitação ou compilação fragmentária, e sim o nascer de novo” (p. 180), de modo que nos seja forçoso ponderar sobre transformações mais amplas em curso naquela realidade, aquelas que se estendiam pelos rincões mais obscuros da sociedade italiana dos séculos XIV-XVI e que, dialeticamente, serviram de solo para que a Antiguidade pudesse aflorar.

É ingenuidade pensar que um grupo de intelectuais e artistas, por mais brilhantes que tenham sido – e eles de fato o foram –, pudessem ser pivôs, por si só, dos profundos abalos pelos quais passou a sociedade e a cultura italiana e ocidental. A compreensão do “fenômeno histórico” Renascimento demanda que sejamos capazes de tomar às mãos mais fios de causalidade e mais variáveis históricas, de modo que, diante deles e de sua intrincada dialética humana, possamos compreender a substância que formava aquele mundo e as circunstâncias que ensejaram sua feitura.

É certamente nesse intento que Burckhardt procura compreender algumas das circunstâncias que cercearam e condicionaram os pensadores e artistas renascentistas. O desenvolvimento do indivíduo, o “homem moderno”, é uma delas, sobre a qual o historiador suíço escreveu o seguinte:

Na Idade Média, ambas as faces da consciência – aquela voltada para o mundo exterior e a outra, para o interior do próprio indivíduo – jaziam, sonhando ou em estado de semivigília, como que envoltas por um véu comum. De fé, de uma prevenção infantil e de ilusão tecera-se esse véu, através do qual se viam o mundo e a história com uma coloração extraordinária; o homem reconhecia-se a si próprio apenas como raça, povo, partido, corporação, família ou sob qualquer uma outra das demais formas do coletivo. Na Itália, pela primeira vez, tal véu dispersa-se ao vento; desperta ali uma contemplação e um tratamento objetivo do Estado e de todas as coisas deste mundo. Paralelamente a isso, no entanto, ergue-se também, na plenitude de seus poderes, o subjetivo: o homem torna-se um indivíduo espiritual e se reconhece como tal. (p. 145)

A “contemplação e o tratamento objetivo” da realidade são certamente uma das contribuições mais importantes do Renascimento. O Iluminismo, por exemplo, um de seus rebentos diretos ou indiretos, apoiou-se largamente nessa forma de observar as coisas posteriormente. O indivíduo do qual fala Burckhardt, conquanto haja controvérsia quanto a sua origem e seu fortalecimento efetivo, está diretamente ligado ao pensamento objetivo e subjetivo da realidade, os quais, por sua vez, encontram-se arraigados num contexto de secularização do pensamento e expansão do humanismo. Esses três fatores possuem um valor inestimável para o desenvolvimento do pensamento moderno e, por consequência, para os rumos que tomaria a história da humanidade.

Mais do que uma mudança somente dos espíritos, todo esse repensar possui uma ligação intrínseca com transformações que se davam nas bases da sociedade italiana. O “Estado como obra de arte” (p. 36) é uma dessas mudanças: o passado sangrento da política italiana, aquela das famílias nobres em disputa e da instável relação com o papado vai aos poucos se transformando, abrindo espaço para a posterior formação das Repúblicas e das diversas instâncias civis e políticas. A decadência da feudalidade e o desenvolvimento do comércio e das navegações acabou por estabelecer novas experiências e um contato mais intenso com outros povos e outras culturas. O espraiar dessas mudanças na estrutura social se fez evidente com o desenvolvimento de camadas burguesas e levou a um repensar sobre a imagem da nobreza. Além disso, a criação de representações públicas e sistemas de governo distintos daqueles dos senhores feudais contribuiu para dinamizar a vida urbana e cotidiana e remover os obstáculos para o desenvolvimento posterior do mercantilismo e, mais à frente, do capitalismo.

A sensibilidade de Burckhardt ao tratar das obras de arte e especialmente da literatura é notável. Sua perspicácia em notar as intersecções e diferenças entre Petrarca, Bocaccio, Maquiavel e Dante, bem como sua influência por sobre o pensamento do Quattrocento e Cinquecento se revelam fruto de um longo e incansável processo de leitura, releitura, análise e síntese escrita. O entrelaçamento que o historiador promove entre as mais diversas expressões culturais – desde festas religiosas até a sátira, da poesia até os escritos filosóficos – para propor conclusões e aventar hipóteses sobre os distintivos do Renascimento é conduzido com grande erudição, o que permite auferir outras conclusões que Burckhardt somente trata brevemente, como o papel da nobreza na sociedade italiana ou o desenvolvimento da subjetividade da religião.

Visto que o elemento que serve de norte para todas as discussões do livro é a cultura do Renascimento na Itália, a forma com a qual Burckhardt procurou organizar sua argumentação visou contemplar a exploração da cultura enquanto um dos eventos mais espetaculares e importantes desse processo histórico. Confesso que senti falta de uma discussão mais sistemática sobre as mudanças sociais em curso na Itália daqueles séculos, não em si somente, mas como condições essenciais nas quais floresceu a cultura renascentista. Antes de acusar Burckhardt de ter se esquecido disso – acusação infundada, diga-se de passagem –, é preciso dizer que, como um trabalho dentro da História Cultural, a posição que as mudanças sociais e materiais ocupam em sua análise historiográfica se dá em função da exegese da cultura, que, aliás, é o catalisador de sua discussão.

A cultura do Renascimento na Itália, pela sua solidez, continua a ser um livro de referência mesmo tendo sido publicado no século XIX. A longevidade de sua relevância ajuda a compreender o valor que a erudição e que a pesquisa profunda e exaustiva têm, ainda que haja quem insista em negar-lhes a importância em nome da pressa.