“O povo é como tronco de árvore. Todos se apoiam a ele, sobem por ele, para apanhar os frutos que estão lá em cima. Não é o povo que lhes interessa. Só os frutos.” 1

A primeira imagem que tive de Angola foi quando tinha uns 7-8 anos, pelo telejornal, que apresentava crianças não muito mais velhas do que eu, com membros amputados e rostos magros de fome. O repórter, narrando ao fundo, explicava que as tais crianças tinham sido vítimas das inúmeras minas terrestres espalhadas pelos campos angolanos, resultado de anos de Guerra Civil.

Vinte anos depois, Angola ainda tenta se reerguer sob a liderança dos mesmos partidos que iniciaram a revolução e conduziram as guerras. A fórmula política e econômica posta em prática pós-revolução de independência nada mais foi do que uma cópia malograda da URSS, que engessou o país em uma economia estatizada e só reforçou as desigualdades sociais e econômicas. Estranho é saber que, quando a revolução pela independência de Angola começou, o resultado almejado era o oposto. O que aconteceu, então, no meio do caminho, que mudou o curso da história política e social de Angola?

É esta a análise proposta por Pepetela em sua obra A Geração da Utopia, publicado pela primeira vez em 1992, e reeditado este ano pela LeYa aqui no Brasil. Longe de ser um livro de história, a obra é um romance que relata 4 momentos da história de Angola, sob a ótica de 4 personagens distintos, todos de origem comum: angolanos (negros, mulatos e brancos) que se conheceram na Universidade de Lisboa quando estudantes e juntos sonhavam com seu país independente e seu povo livre da miséria.

O romance se inicia em Lisboa, à época em que a malta angolana construía um ideário socialista e revolucionário. Assim conhecemos Sara, uma angolana descendente de portugueses colonos; Aníbal, um aluno excepcional, eloquente e militante comunista; Vítor, jovem estudante envolvido na causa de seu país e melhor amigo de Malongo, que por sua vez é jogador de futebol, desinteressado dos assuntos políticos e só quer saber de fama e mulheres. Sob os olhos de Sara e pelas palavras de Aníbal, vemos a formação de uma ideologia revolucionária pela independência de Angola, o nascimento do sonho de uma geração para a construção de seu país.

Em um salto de 10 anos, encontramos Vítor como comandante de Guerra, errante no deserto angolano, sozinho, depois de ter se perdido de seu batalhão numa emboscada. Dentre todas as partes do livro esta é a mais simbólica, não apenas pela representação do deserto, mas por expressar o divisor de águas do pensamento desta geração revolucionária, o momento em que a ideologia se transforma em utopia e que os valores universais do socialismo e a ideia da Nação Angolana dá lugar ao tribalismo e a busca de privilégios próprios.

O que é mais marcante deste livro não é apenas o fato de ele ainda ser atual à história de Angola, mas por ser um retrato fiel de muitas histórias de revolução e guerras ideológicas que, aos poucos, vão se distanciando dos objetivos iniciais. Os mesmos personagens, o mesmo destino, poderiam ser de brasileiros, argentinos ou chilenos, portugueses e espanhóis na época de seus regimes militares.

Este é o grande trunfo de A Geração da Utopia. Pepetela, jovem angolano à época do início da revolução pela independência de seu país, foi militante do Movimento Pela Libertação de Angola (MPLA) durante a dissidência e articulação para a guerra revolucionária. Exilou-se para estudar em Argel (Argélia), quando pôde vivenciar a luta armada contra a França, pela independência. Em 1969, voltou a Angola para comandar pela MPLA a revolução contra os portugueses e, quando finda a guerra em 1975, tornou-se Vice-Ministro da Educação em Angola, pelo então recém legalizado Partido MPLA.

Apesar de seu envolvimento até os ossos com a causa, o autor é capaz de fazer uma análise lúcida e dissecada sobre o que foi o movimento revolucionário angolano. Essa crítica se faz possível pelo fato de que a obra foi escrita após sua saída do governo pós-revolucionário, e segue seu questionamento aberto quanto à trajetória política do país: os desdobramentos da guerra civil – que passou de guerra contra os colonizadores a guerras entre tribos angolanas pelo poder do país –, a corrupção massiva do governo e a desconstrução dos valores revolucionários que a sua geração tantou defendeu.

Na terceira parte do livro, em outro salto no tempo, Aníbal, o Sábio, vive na Angola logo após o fim da guerra pela independência. É o único personagem que manteve intactos seus valores e ideologia, vivendo isolado em uma cabana por não aceitar no que seus colegas combatentes se transformaram – e o que eles fizeram de seu país. Sozinho, resolve enfrentar seus próprios demônios e acaba por descobrir-se completamente desacreditado do poder de mudança da sua geração – uma geração falida.

A Geração da Utopia trata, sobretudo, da juventude angolana e da ideologia revolucionária, que ao longo da guerra civil e da dura realidade que tiveram de enfrentar, foram se afastando de seus objetivos iniciais. Aos poucos, as diferenças tribais, as intrigas pessoais, a corrupção pelo poder, falaram mais alto, e os jovens revolucionários se tornaram burocratas hipócritas que se aproveitam do povo, ou idealistas desiludidos e descrentes da mudança que tanto sonharam. São histórias de dissidências de ideologias, de princípios, de sonhos e de si mesmos.

Por fim, Malongo volta para Angola 17 anos após a declaração da indepenência, como um homem de negócios. Lá, encontra a situação propícia para se enriquecer às custas da elite governista de seu país, conseguindo acordos duvidosos para as empresas que representa em troca de – literalmente – whiskies e mulheres. A corrupção é terreno fértil para sua carreira, que em pouco tempo o transforma em um dos homens mais ricos de Angola – mas a sua volta, não consegue deixar de conviver com a miséria de seu povo ao ver-se transformado em Colono. O trunfo final – e triste – é o encontro entre ele, Vítor e um antigo colega de juventude, muito religioso e ex-membro do UPA (grupo revolucionário terrorista), que se aliam para fundar uma nova religião promissora, que em muito pouco tempo conquista fiéis seguidores que não poupam o pouco que têm para doar à Igreja da Esperança e da Alegria do Dominus.

Pepetela não se prende a moralismos ao contar o triste fim da luta revolucionária em Angola. Por meio de cada personagem representativo dessa geração, assistimos seu país nas mãos de uma juventude despreprarada, incapaz de assumir a responsabilidade da qual se incubiu. Ao cabo de 14 anos de luta, essa geração aprendeu que a realidade é mais dura, que pessoas mudam de direção, que o poder corrompe, que o inimigo não está apenas lá fora. E que a Utopia, no fim, é só um sonho.

  1. A Geração da Utopia. Pepetela. P.212 – Editora LeYa