O mundo vai se acabando pouco a pouco (p. 222)

 

Um êxodo bíblico de homens, mulheres e crianças, sob a liderança de José Arcádio Buendía, encontra uma região isolada à beira de um rio, protegida pelos montes e sem caminho para o mar, e decide nela estabelecer Macondo. Assim a aldeia nasce, numa época em que “o mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome” (p. 43), e assim começam os cem anos de solidão.

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Gabriel García Márquez (1928), o “Gabo” da Colômbia, o Gabo do mundo todo, é o místico homem de gênio por trás dessa obra literária de proporções e desdobramentos1 até hoje não totalmente conhecidas, um dos livros mais lidos e traduzidos do mundo (até 2007, 50 milhões de cópias), que no Brasil está disponível pela editora Record, com tradução de Eric Nepomuceno.

O grande mundo gira, o tempo passa e hoje o octogenário escritor padece da demência e não escreve mais, mas as novas gerações continuam descobrindo em sua literatura uma porta para o mundo perdido do fantástico, onde acontecimentos sobrenaturais são narrados com tanta naturalidade que põem em dúvida a rígida e niilista realidade.

Gabo, o místico, constrói em Cem Anos de Solidão uma intricada árvore genealógica que inicia-se com a união dos primos José Arcádio Buendía e Úrsula Iguarán. A família Buendía-Iguarán sobrevive por mais seis gerações – todas acompanhadas pela matriarca, uma mulher que “se negava a envelhecer” (p. 283) e que viveu para além dos 110 anos – e enfrentam as contingências do tempo das formas mais diversas, numa verdadeira síntese das experiências humanas.

A família Buendía vem intrigando leitores ao longo dos anos: Aurelianos e José Arcádios, filhos e netos, parecem condenados à repetição de histórias já vividas, num mundo em que o tempo não avança, mas dá voltas redondas – uma transloucada referência ao Eterno Retorno de Nietzsche. Nessa família cheia de personalidades gêmeas e onde identidades se confundem, de mulheres fortes e histórias sofridas, os dramas são como enfeites num cenário maior de um debate genial sobre política.

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Em Cem Anos de Solidão as intensas doses de nostalgia impregnam as páginas e as mãos dos leitores, mas para além da linguagem romântica e das histórias sobrepostas está uma densa crítica política (herança das conversas do ainda menino Garcia Márquez com seu avô militar, em Aracataca).

Macondo é uma síntese da América Latina em seu irremediável provincianismo político, instabilidade histórica e passividade diante do estrangeiro. Nasce como uma aldeia “onde não existia paixões políticas” (p. 137), tão nova (pura) que nem mesmo mortos havia sob seu solo. Mas logo a Igreja chega, e também os representantes do governo (o sistema), a peste do sono, a febre da banana e os estrangeiros (“gente sabida” com nome americano). Assim Macondo passa de um “paraíso de umidade e silencio” (p. 53) a um povoado convulsionado pela vulgaridade” (p. 289).

20 - O Buendía com rabo de porco, o último da estirpe, sendo comido pelas formigas

O desvirtuamento da cidade reverbera na família: os Buendía assumem cargos oficiais, postos militares e em certo momento ganham ares monárquicos, sempre misturando as contingências pessoais à vida pública. Outro cenário importante da história é a casa da família, que sofre com o tempo e com a dor de seus habitantes e que diversas vezes se refaz em reformas que tentam esconder as fendas do tempo.

A narrativa de García Márquez cria empatia entre os leitores e essa trama de um povoado, de uma família, de uma casa e de um continente; a nós, latinos, leva a um profundo sentimento de identidade: Macondo é aqui.

Apegamo-nos à cidade e tememos sua destruição. Apegamo-nos à família e sofremos por sua “sina solitária” (p. 296). Com atenção, identificamos as referências históricas: os governos que não conseguem se substituir sem guerras ou golpes, decretos de censura (o Decreto Número Quatro da trama nos traz à lembrança o AI-5), o poder que sobe à cabeça, a fraude eleitoral, a história oficial mentirosa e tantas outras máculas com correspondências reais nesta tão latina América. E foi assim, diz o Gabo, que “o mundo ficou triste para sempre” (p. 53) e que fez com que em Macondo chovesse “durante quatro anos, onze meses e dois dias” (p. 349).

Gabriel García Márquez é comunista desde os tempos da faculdade e considerado até mesmo um dos últimos militantes esquerdistas, portanto, esse pano de fundo de referências latino-americanas tem na base um profundo sentimento crítico à situação do continente.  Macondo é uma “comunidade eleita pelo infortúnio” (p. 411), habitada por demiurgos e “cujo aniquilamento não se consumava, porque continuava aniquilando-se indefinidamente, consumindo-se dentro de si mesmo, acabando-se a cada minuto mas sem acabar de se acabar nunca” (p. 434). Ler sobre Macondo é pensar em nosso continente, nos povos à nossa volta e no solo sob nossos pés – não desejando às Américas o mesmo fim daquela cidade.

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Embebido de sua “irremediável nostalgia” (p.69) e com uma profunda habilidade de construção dramática – que manobra dezenas de personagens sem abandonar o leitor –, García Márquez construiu uma obra que é contemporânea há cinquenta anos e que se desdobra em inúmeras formas de interpretação. Não à toa, foi honrado em 1982 com o Nobel de Literatura e em seu discurso2 citou sua América Latina, “pátria imensa de homens alucinados e mulheres históricas, cuja tenacidade sem fim se confunde com a lenda” (p. 8), em tom de desejo esperançoso:

 

[Desejo] Uma nova e arrasadora utopia da vida, onde ninguém possa decidir pelos outros até mesmo a forma de morrer, onde de verdade seja certo o amor e seja possível a felicidade, e onde as estirpes condenadas a cem anos de solidão tenham, enfim e para sempre, uma segunda oportunidade sobre a terra (p. 12)

 

  1. Um dos desdobramentos são as lindas ilustrações de Carybé que ilustram este artigo
  2. O discurso também está presente na edição da Record utilizada para esta resenha.