Não é fácil ser um personagem de Philip K. Dick. Não bastassem os desafios impostos por inimigos mais convencionais, como governos autocráticos, burocratas mergulhados em esquemas de poder ou policiais corruptos – adversários muitas vezes apoiados pelo sistema, o que já dificulta bastante as coisas – seus protagonistas quase sempre precisam lutar para manter as próprias ideias em ordem. Pode ser um problema de memórias falsas (como no conto de onde veio O Vingador do Futuro) ou uma pequena insegurança como “ei, talvez eu também seja um androide” (em Blade Runner – O Caçador de Androides), mas o fato é que os personagens de PKD nunca estão seguros em suas próprias realidades, e não é diferente em Fluam, minhas lágrimas, disse o policial.

Desta vez, quem passa por essa situação é Jason Taverner, que conhecemos no início do livro como um apresentador prestigiado de um programa de variedades, com uma audiência de 30 milhões de espectadores, rico, galanteador, ainda um sedutor, embora já não esteja mais em seus dias de glória. Um homem que se considera acima do restante da humanidade, e até mesmo insinua pertencer a um grupo de privilegiados (cuja natureza só será explicada bem à frente) que se autodenomina “os Seis”.

Mas nada disso impede que Taverner, logo no início do segundo capítulo, já se encontre sozinho, no quarto de uma espelunca, num lugar desconhecido e sem seus documentos. Mais grave que isso, ele logo descobre que não está registrado em nenhum dos sistemas do governo. Mais absurdo ainda, ninguém se lembra dele, um homem que estava semanalmente na TV e com frequência nas colunas dos famosos. Parece ter sido simplesmente deletado da realidade.

Por tudo isso este possivelmente é o romance em que a desconfiança quanto à realidade das coisas aparece mais abertamente nas obras de PKD. Há uma ruptura completa da continuidade, que serve como uma experiência fictícia de se questionar: o que garante que amanhã todas as coisas permanecerão da mesma maneira como entendemos hoje?

Numa entrevista feita em 1977, o escritor falou da importância que dava à questão, num trecho que merece ser citado:

E assim uma busca de que nunca vou abrir mão, e em que sinto ser capaz de ser bem sucedido, é a de determinar de uma vez por todas, para minha própria satisfação – não necessariamente a satisfação de qualquer um outro, mas minha própria satisfação – qual é a verdaderia natureza da realidade à nossa volta, comparada, contrastada com a aparente, evidente, fenomenológica realidade que percebemos. Como você sabe, eu tenho escrito sobre isso há 27 anos, na forma de questionamentos. Sondei o mundo fenomenológico procurando por alguma coisa por trás dele, e foi por isso que tomei LSD. Só tomei LSD três vezes, e não encontrei as respostas através dele, por isso o larguei.

 

No restante da entrevista, PKD fala de uma experiência específica, em que, durante três dias e meio, deixou de perceber as coisas da maneira como elas normalmente aparecem. Esse é aproximadamente o mesmo período em que dura a ação de Fluam, minhas lágrimas, o que, claro, pode ser apenas coincidência, mas de toda forma, o romance parece ser, se não uma tentativa de colocar em palavras aquela experiência transcendente, ao menos mais uma sondagem a respeito de como seria possível justificá-la.

Mas esses são motivos apenas subjacentes em relação à ação central do romance. Taverner, após uma avaliação rápida das suas novas circunstâncias, não se desespera. A princípio, tem a convicção de que as coisas poderão se resolver facilmente, e sai à procura de pessoas que possam reconhecer sua existência. No entanto, no futuro distópico do livro, a mera circulação sem documentos pode levar à suspeita de participação em grupos de resistência estudantil e aos campos de trabalhos forçados, e a trama evidentemente se complica.

Na maior parte do tempo, a história acompanha as peregrinações de Taverner, que seguem rumos completamente inesperados, à medida que ele faz contato com personagens que vão desde uma falsificadora de documentos até o general da polícia de Los Angeles.

Uma outra característica comum à obra de PKD é o espaço dado a esses personagens secundários. Ainda que não atinjam o mesmo nível de desenvolvimento de um romance propriamente psicológico, vários deles possuem personalidades bem destacadas e precisam lidar com dificuldades emocionais específicas. Não é raro que Taverner suspenda toda a sua preocupação com sua situação irreal para incentivar um outro personagem a lutar contra seu medo crônico e patológico, ou para iniciar uma discussão sobre a validade do amor frente à necessidade do sofrimento, trechos incomuns para uma história de ficção científica.

“Você ama alguém, e a pessoa vai embora. Ela chega em casa um dia e começa a fazer as malas, e você diz: “O que está acontecendo?”, e ela responde: “Recebi uma oferta melhor em outro lugar”, e lá vai ela, saindo da sua vida para sempre. E depois disso, até a morte, você carrega esse enorme quinhão de amor sem ninguém para recebê-lo. E se você encontra alguém para recebê-lo, a mesma coisa acontece de novo. Ou você liga para a pessoa em dia e diz: “É o Jason”, e ela diz: “Quem?”, e aí você sabe que não aguenta mais. A pessoa nem sabe quem você é. Então, concluo que nunca soube; ela nunca chegou a ser sua.”

 

Não se preocupe o leitor, no final muito se explica sobre a situação de Taverner. Mas não se engane, este não é um daqueles livros em que se descobre que o vilão havia apagado os arquivos do sistema ou qualquer coisa assim. A resposta é complexa, multifacetada, como na maioria das histórias de PKD, do tipo que incentiva as pessoas a discutir e a inventar cada um a solução que mais lhe satisfaça. Mas, afinal, quem disse que a realidade é simples?