Sabe-se que ter elementos de um romance policial não faz com que um livro necessariamente se encaixe nesse gênero. A tônica investigativa está presente na literatura desde os livros clássicos até os best-sellers.  Ao tomarmos conhecimento da “Trilogia Tebana”, de Sófocles, por exemplo, podemos dizer que é provável que Édipo tenha sido o primeiro detetive da literatura. Para desvendar os mistérios inerentes a ele, para constituir a sua identidade, o rei de Tebas desvendava os enigmas que cruzavam o seu caminho. Ao ampliarmos um pouco a temática de Édipo, podemos dizer que, para Claude Lévi-Strauss, o maior trunfo do Mito de Édipo é nos mostrar que, no fim das contas, não sabemos quem somos. E, no caso de Édipo, seria melhor ele ter permanecido ignorante acerca de suas origens?

No livro Teoria da viagem, Michel Onfray, ao falar sobre o que ocasiona o deslocamento do viajante, aponta para o fato de que “só pegamos a estrada movidos pelo desejo de partir em nossa própria busca com o propósito, muito hipotético, de nos reencontrarmos ou, quem sabe, de nos encontrarmos”.1 Ele ressalta ainda que “os trajetos dos viajantes coincidem sempre, em segredo, com buscas iniciáticas que põem em jogo a identidade”. Nessa perspectiva, “toda viagem é iniciática – assim como uma iniciação não cessa de ser uma viagem. Antes, durante e depois se descobrem verdades essenciais que estruturam a identidade”.

O exercício que faz Juan Preciado em Pedro Páramo, do escritor mexicano Juan Rulfo, ao viajar para Comala, sua terra natal, é o de conhecer seu pai e sua terra, que ele visualizava por meio das lembranças de sua mãe, não por lembranças que fossem, primariamente, suas, uma vez que ele deixara Comala bem cedo. Conhecer suas origens é uma forma de buscar a constituição da identidade.

Na esteira do desejo de conhecer-se que guia muitos personagens da literatura, segue o desejo do leitor de saber o que a obra lhe reserva. A leitura de Garota Exemplar, de Gillian Flynn, me deixou em crise com algo que eu venho cultivando há um bom tempo: a ideia de que, mais do que o que se conta, importa o como se conta. Afinal, faço parte da imensidão de pessoas que leu Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, sabendo que Diadorim era uma mulher, e isso não fez com que o livro se tornasse menos interessante – embora eu admita que, se não soubesse, a experiência de leitura pudesse ser diferenciada. Aliás, no fim das contas, as estratégias narrativas adotadas por Guimarães Rosa para tratar, entre outras coisas, da temática do amor que independe de orientação sexual, é que me fascinaram completamente.

Gosto de ser surpreendida. Às vezes, a surpresa não reside apenas no que acontece, mas, principalmente, no engendramento estético da obra. Por isso, quando falo sobre livros, gosto que tanto o enredo quanto a técnica literária utilizada para seu desenvolvimento me surpreendam. Meus autores favoritos conseguem me surpreender com coisas inusitadas. Eles arrancam lágrimas e sorrisos da minha alma. E eu saio de algumas leituras mais devastada do que entrei. Porque é isso o que importa, ser surpreendida. Cortázar é um dos meus escritores preferidos porque me surpreende. Acredito que O jogo da amarelinha seja um dos livros mais fantásticos do mundo porque Cortázar faz com que o leitor tenha a sensação de que está construindo a narrativa e, de certa forma, está.

Último round eu leio em ocasiões específicas. Leio naqueles momentos em que eu preciso de Cortázar. Porque eu acredito que seja assim. Não se lê Cortázar porque os outros dizem que você precisa ler. Você lê Cortázar porque precisa de Cortázar. E quando preciso ler Cortázar, me perco e me acho nos estilo de colagem que povoa a sua escrita. Ler Cortázar é como brincar de gato e rato, eu escondo o livro de mim, porque é gostoso saborear a sensação do “por ler”, “por saber”… eu desejo ler, mas acho que desejo mais o desejo de ler. Cortázar faz com que eu me sinta como a protagonista do conto “Felicidade Clandestina”, de Clarice Lispector… e eu agradeço ao Cortázar por, a cada releitura, me surpreender. Cortázar é um dos meus maiores exemplos da efetividade do como contar.

Para as pessoas que se preocupam com o que se conta mais do que o como se conta, acredito que tenha sido um choque absurdo lerem, no início do romance Bonsai, de Alejandro Zambra, que “no final ela morre e ele fica sozinho” (p. 10). Foi um choque para mim, também, confesso. Choque semelhante eu tive há dez anos, quando li, pela primeira vez, Orquídea Negra, de Neil Gaiman. Não, não pretendo entrar no mérito da interminável discussão que se ocupa em dizer se quadrinhos são ou não literatura. O que eu quero dizer é que a maestria narrativa de Neil Gaiman (aliada à magnífica arte de Dave McKean) faz com que a história da Orquídea Negra seja construída na medida em que a técnica de fazer quadrinhos é desconstruída e ressignificada. Brinca-se com os clichês de histórias de super-heróis para se construir a história de uma heroína que, bem, morre nas primeiras páginas dos quadrinhos.

Mas Machado de Assis já nos ensinou, com Memórias Póstumas de Brás Cubas, que as estratégias narrativas são admiráveis. Afinal, trata-se de um morto contando as suas memórias e, no fim das contas, ninguém dá muita atenção para o motivo da morte de Brás Cubas, a gente quer saber é como ele conduziu sua vida. E, para não ficar apenas na obra inaugural do Realismo no Brasil, por que não citar Dom Casmurro? Acho que, antes de aprendermos a falar, já sabemos da eterna pergunta: “Capitu traiu ou não Bentinho?” Mas  saber disso não nos impede de ler o romance do – tomando emprestado o jeito Drummond de ver Machado –  Bruxo Alusivo e Zombeteiro.

Apesar dos muitos exemplos – citados ou não neste texto – que endossam a  aparente supremacia do como contar sobre o que se conta, cabe uma ressalva aqui: quando se trata de romances policiais – romances fechados – saber, por exemplo, quem é o assassino, estraga, sim, a experiência de leitura. Afinal, a proposta deste gênero, grosso modo, é, justamente, juntar as pistas para solucionar o crime. Quando eu estava lendo Assassinato no Expresso do Oriente, de Agatha Christie, passei por uma situação bem divertida. Uma amiga, que já tinha lido o livro há algum tempo, ficava folheando o livro e colocando o dedo em muitas páginas e, a cada página indicada, ela dizia: “o assassino está aqui”. Enquanto eu lia a obra, não pude entender a simbologia do ato, mas, quando cheguei ao desfecho, compreendi, perfeitamente, o que ela quis dizer. Afinal não se tratava apenas de um assassino, mas de vários, o que significa que, sim, eu poderia encontrar um dos assassinos em alguma página aleatória porque as páginas estavam repletas de assassinos.

À exceção do caso mencionado no parágrafo anterior, eu realmente acredito que a forma que o escritor escolhe para desenvolver o livro é que será fundamental para a qualidade dele, e não o assunto nele abordado, e costumo usar essa justificativa para explicar o porquê de alguns livros com um enredo simples, clichê, até, acabarem por me surpreender. Sobre Garota Exemplar (que, sim, tem uma pegada de livro policial, mas que se aproxima mais de Dennis Lehane do que de Agatha Christie, embora, no fim das contas, não comungue, inteiramente, com nenhum dos dois) é difícil separar o que se conta do processo do como contar. Por isso, o livro de Gillian Flynn fica mais apetitoso se saboreado “de surpresa”, sabe? Tipo aquela história de gente que come carne de rã, sem saber, e acha uma delícia, pensando que está comendo carne de frango, mas quando interrogada sobre o sabor da carne de rã, diz que jamais comeria, porque acha nojento.

Se tivesse lido resenhas sobre o livro, provavelmente, os spoilers me fariam desistir da leitura, mas ainda bem que a única resenha que eu quis ler foi feita por uma pessoa que já avisou que a experiência de leitura ficaria mais completa se o leitor tivesse pouca ou nenhuma informação sobre a obra. Este é o mesmo conselho que dou a quem quiser ler algumas das minhas impressões sobre a obra que serão disseminadas ao longo deste texto, porque, inevitavelmente, elas trarão spoilers.

O romance de Gillian Flynn tem um enredo aparentemente simples, que certamente não é novidade para os leitores que já se aventuraram ao lerem as peripécias de Hercule Poirot e Miss Marple solucionando os mistérios propostos nos livros da Rainha do Crime. Para não dizer das pessoas que acompanharam os muitos casos resolvidos pelo mais famoso consultor investigativo de que se tem notícia, Sherlock Holmes. Sim, os casos não eram simples, mas o resumo deles não era algo que gastaria mais de cinco linhas (mantendo-se, obviamente, o desfecho bem escondido), o complicado era o processo de desvendar o caso, trocando em miúdos, o como se conta.

Garota Exemplar começa com um aparente caso de sequestro: Amy Dunne desaparece, no dia do seu quinto aniversário de casamento com Nick Dunne. Depois da ligação de um vizinho, informando-lhe que a porta da casa estava aberta, Nick sai do bar – que mantém com sua irmã, Margo –  e vai para casa. Quando chega lá, encontra a sala revirada, o ferro de passar roupa ainda ligado, e descobre que a sua esposa não está em casa. Por saber que sua esposa nunca deixa nada pela metade (ela certamente terminaria de passar a roupa), Nick tem certeza de que ela foi sequestrada. A polícia é chamada. A partir daí, a trama – que é dividida em três partes – se desenvolve, e ganha rumos um tanto quanto inesperados, embora não inverossímeis.

A primeira parte do livro, além do sumiço de Amy, exibe um retrato do seu casamento com Nick e das coisas não ditas, mas pensadas. No caso de Nick, as coisas não ditas predominam. Na sua ânsia de não ser como o pai, um misógino, ele acaba por se calar até quando deveria falar. Nick é um jornalista do Missouri que viveu em Nova York até perder o emprego. Não há muito o que se  falar sobre ele, entretanto, há muito o que se pensar. E aí, acho, está um dos pontos mais bem articulados do livro: Nick não fala muito sobre si, ele fala sobre Amy, sobre como ela tinha um cérebro brilhante. Com essa jogada, ele acaba por se metamorfosear em uma sombra da sua esposa, e a coloca em um pedestal, o lugar que Amy, desde o nascimento, costumava ocupar na vida das pessoas.

Amy, diferentemente do marido, fala bastante, e a sua versão do casamento é-nos apresentada por meio de um diário. Ao levarmos em consideração o fato de que as confissões que se faz no diário são muito íntimas, acreditamos em cada palavra do que ela diz, ou em quase todas. Afinal, é de se estranhar que uma pessoa com formação em Psicologia seja tão inocente quanto ela aparenta ser, em alguns relatos, seja tão falha em ler as pessoas. Há de se levar em consideração que como se trata do seu marido, ela está muito envolvida na questão para ter uma visão mais clara das questões, mas, ainda assim, a aparente ingenuidade dela, às vezes, acaba nos incomodando.

O casamento de Amy e Nick está em crise. E o leitor é informado disso de duas maneiras: pela visão de Nick e pelo diário de Amy. Mas, ao contrário do que se pode imaginar, as visões não são convergentes. Os motivos do fracasso do casamento são diferentes, estão sintonizadas em estações diferentes. Uma coisa é certa: como é o quinto aniversário de casamento deles, Nick tem certeza de que Amy organizara, antes de desaparecer, a caça ao tesouro, que era uma brincadeira na qual ela incluía pistas referentes aos momentos vividos por ela e Nick durante o ano.

Ao avançarmos na leitura da obra, especialmente, na segunda e terceira partes, percebemos que, no fim das contas, Nick não conhecia a sua esposa tão bem como pensava conhecer, “As pessoas querem acreditar que conhecem as outras” (p. 106).  Ela, por outro lado, o conhecia bastante. No desfecho do livro, bem antes dele, na verdade, o leitor toma consciência de que Amy é uma exímia manipuladora. Mas não podemos nos esquecer de que a Amy é uma estratégia narrativa, então, quem verdadeiramente nos manipula, é a Gillian Flynn. Ela é a Amy e nós, os leitores, somos os muitos Nicks, marionetes levadas pelas cordinhas, isto é, pelas estratégias narrativas, puxadas por Gillian Flynn.

Se as estratégias narrativas é que importam, qual é o problema de se saber, antes de começar a ler o romance, que Amy era uma psicopata? Bem, o problema é que parte da estratégia narrativa adotada por Gillian Flynn reside em utilizar a Amy do diário para fazer com que o leitor fique com ódio de Nick. Se soubermos, desde o início, que a Amy está manipulando todos os ao seu redor, o pacto narrativo fica prejudicado.

No fim das contas, por mais que queiramos decretar a vitória de um, como contar, sobre o outro, o que se conta, ou vice-versa, cada obra é única, e, por isso, não dá para dizermos com 100% de certeza se saber ou não o caminho percorrido pela obra vai atrapalhar a experiência de leitura. O que podemos fazer é nos munir da coragem de Dorothy e irmos, pela estrada de tijolos amarelos, em direção ao Oz que cada obra literária nos reserva.

Sobre a colaboradora: Cleonice Machado é mestre em Literaturas de Língua Portuguesa, com ênfase em Literaturas Africanas. Acredita que isso seja informação demais. Para o caso de não ser uma overdose de informações, é, também, apaixonada por futebol e política. Quando não está no Horto, assistindo aos jogos do Clube Atlético Mineiro, ou nas ruas, militando, é professora de literatura. Mas, sem ingerir quantidades cavalares de café, “não é nada, nunca será nada. Não pode querer ser nada. À parte isso, tem em si todos os sonhos do mundo”. Vocês a encontram no twitter como @cleoamachado .

  1. ONFRAY, 2009, p. 75.