Em minha bio aqui no Posfácio (que você pode conferir no fim da página), escrevo que amo “o Brasil em sua irracionalidade”. Esmiuçar (veja bem, esmiuçar, e não entender) a irracionalidade brasileira foi uma das razões que me levaram à graduação em Ciências Sociais que atualmente enfrento na UFRJ.

Foi justamente essa característica perscrutadora que me levou ao desafio da leitura de Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, um dos livros seminais das Ciências Sociais brasileiras, sempre colocado, ao lado de Casa Grande e Senzala (1933), de Gilberto Freyre, e Formação do Brasil Contemporâneo (1942), de Caio Prado Júnior, como, nas palavras de Antônio Cândido que assina a introdução dessa magnífica obra, “um dos guias para o conhecimento do país” (p. 23).

Sabia que o desafio seria grande. Sabia que Raízes do Brasil é um pequeno notável, um baixinho invocado que com suas duzentas e tantas páginas emergem o leitor numa das mais complexas investigações históricas e teorizações sobre a construção de uma nação.

Sérgio Buarque de Holanda foi um paulistano do início dos XX (1902) que mudou-se para o Rio de Janeiro, onde realizou grande parte de sua produção intelectual. À parte disso, constituiu com dona Maria Amélia uma família prodigiosa de onde saiu Chico Buarque e Miúcha, Ana de Holanda e outros quatro filhos. Era conhecido como “um devorador de livros”, e relatos de seus filhos revelam um pai distante, ensimesmado na biblioteca, rodeado de livros abertos, sempre estudando e produzindo. Militante de esquerda e membro do Partido Socialista, foi um dos fundadores do PT. Em 1936 lançou seu colosso Raízes do Brasil como parte da série de publicações Documentos Brasileiros, sob direção de Gilberto Freyre.

Portanto, são mais de setenta anos que separam a publicação da obra dessa minha humilde resenha. Mesmo que tanto tempo depois, Raízes… permanece como um dos livros intocáveis nos estantes das livrarias. Qualquer busca mais atenta na seção de Humanidades nos fará encontrar a edição em azul claro, com o título se projetando acima do Abaporu (1928) de Tarsila do Amaral, nessa capa de Victor Burton e já histórica da Companhia das Letras.

Soma-se à edição a respeitada resenha ‘O significado de Raízes do Brasil’, do sociólogo hoje nonagenário Antônio Cândido. Diante da colossal análise de Cândido, não deveria me meter a comentar esse livro, por isso e pelo muito respeito que tenho à obra que pesa toneladas de prestígio histórico, não construirei aqui uma análise no estrito do termo, mas uma recomendação e também um guia a essa leitura.

A obra realizada no Brasil pelos portugueses teve um caráter mais acentuado de feitorização do que de colonização. Não convinha que aqui se fizessem grandes obras, ao menos quando não produzissem imediatos benefícios (p. 107)

Cândido bem define Raízes… como um “clássico de nascença” (p.10), que observa a constituição do Brasil com um olhar completamente novo, crítico e obsessivamente metodológico. Em seu laborioso esforço, o autor encontra um país de contrários, que vive discrepâncias desde seu nascimento – e por causa dos termos em que nasceu.

Em termos concretos, Raízes do Brasil é um livro dividido em partes: I – Fronteira da Europa, II – Trabalho e Aventura, III – Herança Rural, IV – O Semeador e o Ladrilhador, V – O Homem Cordial, VI – Novos Tempos e VII – Nossa Revolução. Discuti-las a par e passo seria não apenas deveras laborioso, como também muitíssimo cansativo ao mais bem intencionado leitor.

O que resta saber aqui é que as divisões de Raízes… revelam a intricada metodologia de Sérgio em sua revisita à formação brasileira. Seu estilo inspirado nos modernistas (que ele lia à época da faculdade) aliado à sua racionalidade crítica revelam um Brasil em conjunturas muito diferentes das postas por Freyre em seu Casa Grande e Senzala.

Sergio vê no Brasil de sua época as heranças portuguesas, cuja frouxidão social impregnou-se em seu filho latino. O resultado do Brasil ao seu redor é como uma receita que somou índios, negros e colonizadores que não tinham nenhuma apreço por esta terra (“eles vinham apenas em busca de fortunas impossíveis, sem imaginar criar fortes raízes na terra”, p.62).

Nossas particularidades, nosso “jeitinho” – ou “nossa anarquia, nossa incapacidade de organização sólida” (p. 33) –, vieram nos navios de “aventureiros” de Portugal, nação que já vivia às margens da racionalidade formal da Europa. A nós coube a “cultura da personalidade” portuguesa, que gerou o “homem cordial” brasileiro – para o autor, a grande herança do país à civilização mundial.

A frouxidão portuguesa manifestava-se inclusive na monarquia e revelou-se em diversas esferas sociais, como na do trabalho – e para o autor, é daí que herdamos nossa má disposição para o labor. Curiosamente, Sergio aponta que o Brasil só começou a se pensar em termos de nação (especialmente na Economia) com a chegada da corte, e posteriormente com a Independência: o ano de “1888 apresenta o marco divisório entre duas épocas” (p. 73), o Brasil toma consciência de si e inicia sua jornada autossuficiente.

Em dado momento, Buarque dedica-se a analisar o projeto holandês no Brasil, mostrando-se cético à capacidade de Nassau de, em conjunturas diferentes, moldar um país que hoje (ou à época da escrita do livro) poderia ser outro. Para o autor, os holandeses não eram “adequados a um país em formação” (p. 62). Parece que fomos condenados ao “jeitinho” português de fazer uma país.

O português para o autor é um “Aventureiro”, homem que visa o objetivo final sem se importar com o caminho a percorrer. Ele tem “audácia, imprevidência, irresponsabilidade, instabilidade, vagabundagem” (p. 44) – mesmo assim, à oposição do “Trabalhador”, é o mais adequado às necessidades colonizadoras.

Somos, portanto, filhos de aventureiros que aqui instauraram uma decrépita civilização de origens rurais e importaram uma frouxidão de tradições (p. 59) que se arraigou completamente a essa terra. Foi assim que por aqui se constitui uma sociedade caracterizada por “uma suavidade dengosa e açucarada [que] invade, desde cedo, todas as esferas da vida colonial” (p. 61)

O que o português vinha buscar era, sem dúvida, a riqueza, mas a riqueza que custa ousadia, não riqueza que custa trabalho (p. 49)

Fica evidente ao longo de toda a obra que Sérgio Buarque dedicou-se com apaixonado esmero à sua investigação histórica. Para tratar das interações entre os povos de um Brasil ainda jovem, descreve até mesmo as modificações na constituição das casas. Sobre a constituição da família brasileira, enxerga uma formação erigida sobre normas clássicas e cujo “rígido paternalismo” (p. 85) fora transportado para a política na figura do pater-familias, senhores rurais que originaram os coronéis e caciques que até hoje podemos encontrar.

Estereotipada por longos anos de vida rural, a mentalidade de casa-grande invadiu assim as cidades e conquistou todas as profissões, sem exclusão das mais humildes (p. 87)

Em meio às perspectivas históricas, o autor nos apresenta algumas das mais instigantes teorias sobre o ser brasileiro, como a do Semeador e o Ladrilhador, ligando essas figuras à “fundação das cidades como instrumento de dominação” (p. 93):

A habitação em cidades é essencialmente antinatural, associa-se a manifestações do espírito e da vontade, na medida em que se opõem à natureza. (p. 95)

Com uma escrita rebuscada, ocasionais referências literárias e citações em outro idioma sem a mínima preocupação com traduções, Buarque cria uma vasta obra que, no entanto, é indicada apenas a iniciados. Nessa sua biografia brasileira, faz sempre um jogo dialético entre as formas portuguesa e espanhola de colonização, mas não se centraliza em figuras históricas, embora evidentemente as cite aqui e acolá (como o Barão de Mauá referido na p. 74).

Ler Raízes… sem o mínimo de prévia teoria histórica é como mergulhar no Atlântico sem equipamento de respiração, afogar-se num oceano de interrogações ou buracos teóricos. Raízes do Brasil é uma obra seminal que deve ser apreciado por todos os que aqui habitam, contudo, antes de lê-la, recomenda-se um mergulho em mares mais rasos.