Já tive oportunidade de explicar minhas impressões iniciais acerca do romance histórico na resenha que fiz sobre o livro História do cerco de Lisboa, do escritor português José Saramago, e não quero ficar me repetindo nesse sentido. Neste texto, portanto, busquei interpretar minha experiência de leitura de um romance histórico – Criação, do escritor norte-americano Gore Vidal (1925-2012) – diante das colocações que fiz outrora, buscando, é claro, prover aos leitores do Posfácio uma análise e uma breve apresentação acerca da trama.

Gore Vidal dedicou boa parte de sua carreira literária a dois exercícios que, se não podem ser tomados como centrais em todo e qualquer livro seu, certamente são cruciais para compreender o romance Criação: a escolha do romance histórico como “forma” literária, e a preocupação com a política externa dos Estados Unidos. No primeiro caso, basta observar quantas páginas o escritor dedicou a romances históricos para se ter uma noção de que essa forma é uma das principais das quais ele se utilizou em sua escrita, e que ela, portanto, não é uma escolha desprovida de significações e repercussões mais profundas. No segundo caso, Vidal se destacou como um analista bastante célebre acerca da posição que os Estados Unidos assumiram perante o mundo nas dinâmicas internacionais

No caso de Criação, Vidal nos leva ao século V a.C., época em que viveram figuras emblemáticas para toda a cultura ocidental e em que significativos eventos históricos estavam em curso, tais como as Guerras Greco-Persas – também conhecidas como Guerras Médicas – e as tensões diplomáticas entre dois modelos de civilização que, juntos e dialeticamente, moldaram as feições do mundo. A narrativa de Vidal, no entanto, nos conduz através de uma trajetória individual, a de Ciro Espítama, um representante da dinastia persa na Grécia que na velhice resolve contar a história de sua interessante e intensa vida.

Ciro é um personagem fictício, mas se insere na trama de Criação sendo o neto de Zoroastro, figura emblemática da religiosidade persa. Essa posição genealógica lhe põe nas graças dos governantes – Dario e Xerxes, especialmente – e de figuras importantes – como nobres e intelectuais gregos e persas, por exemplo – na mesma medida em que lhe põe em situações delicadas, já que dentro e fora dos domínios persas há uma série de questionamentos e intrigas ligados tanto a Ciro Espítama quanto ao zoroastrismo.

Vidal criou um personagem interessante na medida em que ele estava inserido numa complexa trama de relações dentro daquela realidade: a posição do protagonista o empurra na direção de uma série de conflitos e situações-limite que deslindam o panorama daquela realidade histórica, desde a questão ligada à intrincada relação entre os persas e os gregos até o rico panteão filosófico que viveu nesse tempo, desde Sócrates até Confúcio.

A história é conduzida de modo a fazer Ciro Espítama visitar os mais diversos lugares e personagens clássicos – desde a Índia até a China, de Buda a Lao-Tsé –, e, nesse ínterim, buscar apresentar o que seria uma possível perspectiva persa acerca dessas culturas, homens e sociedades. A estratégia de Gore Vidal é tão ousada quanto bem conduzida, ou foi o que me pareceu lendo como alguém que não é profundo conhecedor desse período histórico nem dessas filosofias. A construção de Ciro Espítama e a escolha das sombras históricas que deveriam estar sobre ele foi certamente objeto de muita reflexão e ponderação de Vidal, especialmente considerando a quantidade de fios históricos em que ele está emaranhado.

Criação possui aquela cadência que é tão típica dos romances históricos: a evolução gradual e às vezes até lenta da trama. Visto que se trata de um livro que se passa numa era distante e em um período clássico, os elementos que compõem o universo proximal de Ciro Espítama fazem desfilar o esforço de pesquisa do autor bem como uma série de informações acerca do cotidiano e dos aspectos gerais da vida naquela realidade: desde a disposição dos quartos em um palácio persa até as complicadas relações que rodeavam tanto Dario quanto Xerxes, da hierarquia social grega até as vestes, acessórios e armas dos mais diversos sujeitos sociais de ambos os lugares onde esteve o protagonista. Embora esse esforço muitas vezes seja louvável no sentido de recriar a atmosfera do período, ele concorre constantemente para acabrunhar a narrativa de curiosismos acessórios mais do que elementos diretamente atrelados ao desenrolar da trama e das questões tratadas centralmente pelo escritor.

Foi precisamente essa preocupação que me levou a perguntar constantemente ao longo da leitura: afinal, qual é a questão central de Criação? Não há um problema – no sentido de conflito ou questão que fomenta a trama – ao qual Vidal dedicou-se a responder – ou cotejar – por meio da narrativa ficcional? E foi somente estendendo o questionamento para o universo que está além das páginas do livro que creio ter encontrado uma hipótese que me pareceu cabível mas que não posso tomar como certa sem o devido debate.

Grosso modo, Criação é um livro que ousa tomar como protagonista um dos representantes de um mundo que, como sabemos, foi derrotado pelos gregos nas Guerras Greco-Persas. Porém, mais do que uma simples choque militar ou uma vitória unilateral, estavam em jogo naquele momento – no atribulado século V a.C. – não só a supremacia política dos envolvidos, mas distintos modelos de civilização. Esse fato, portanto, potencializa a tarefa de Vidal: ele quer contar uma história tendo como elemento de orientação os olhos de alguém que esteve do outro lado da refrega, visto que os gregos que venceram os persas são tidos como um dos pilares da civilização ocidental.

Por si só, isso parece ser uma questão bastante interessante. Porém, o que a faz ser ainda mais plena de sentido é sua localização histórica: os anos 80, num momento delicado da já delicada diplomacia da Guerra Fria. A revolução iraniana estava explodindo e os Estados Unidos assumiam uma posição potencialmente inflamável nessa contenda ao abrigar o aiatolá Khomeini, que fugira do país. Ou seja, num momento em que dois modelos de civilização se chocavam – ainda que em termos diferentes –, Vidal se voltava a um período, num passado distante, em que uma refrega similar tinha se dado. Embora as proporções sejam muito diferentes e o mundo tenha mudado muito de um tempo a outro, Irã e Estados Unidos fizeram as vezes de dois modelos de civilização que se chocavam, um como oriente, outro como ocidente.

Eis, portanto, como o livro de Vidal assume contornos políticos espinhosos: ele toma, no Ocidente, a galharda tarefa de tentar reconstituir a história pelos olhos de alguém do Oriente. Embora, obviamente, não haja referências diretas ao mundo dos anos 80 – para o universo ficcional de Criação eles sequer existiram –, a escolha nos revela uma determinada leitura da realidade. Por que não falar de outro período e de outros personagens que não esse ou esses? Essas escolhas, por mais individuais que as concebamos, não deixam de ter um rastilho histórico em seu encalço, ensejado pelos mais diversos elementos, inclusive o fato de que Vidal, além de cultivar romances históricos como expressões literárias muito relevantes em sua produção escrita, também era um crítico da política externa estadunidense.

Essa leitura encontra-se reforçada se analisarmos ainda dois elementos bastante significativos nesse sentido: o ofício exercido por Ciro Espítama em Criação; e o título que a obra possui em relação ao seu conteúdo.

O protagonista atua como um embaixador dos monarcas persas em outras regiões, desde a China até a Grécia, de modo que seu olhar, não somente sendo o do “outro”, é também o do outro numa situação existencial continuamente fronteiriça, isto é, aquela onde as diferenças se evidenciam e os choques se tornam constantes. Mais do que uma simples solução para fazer o personagem viajar dentro do universo ficcional, creio que a preocupação de Vidal era promover esses intercâmbios e analisar a história por um prisma distinto.

Quanto ao título, creio que o que ele sugere vai além dos debates filosóficos que Espítama travou com Buda, Confúcio e representantes do zoroastrismo: ele está mostrando, através desses diálogos, a gênese do oriente e do ocidente, os dois mundos e civilizações que estão à beira do choque na época do protagonista e também no tempo do autor. A criação, portanto, se referiria não somente aos debates cosmogônicos, mas também aos históricos, aqueles a respeito do que faz os dois modos de ver e de viver tão diferentes.

O livro de Vidal, por conta de todos esses elementos aqui arrolados e discutidos, desafia aquele que se constitui um problema, a meu ver, dos romances históricos: seu fim em si mesmo. A questão que parece percorrer a trama não é sua justificação em si mesma, mas sim sua reelaboração diante de questões que permeiam mesmo o nosso presente, afinal Criação não fala do século V a.C. somente por falar do século V a.C., mas sim porque o urge todo um universo de questões que extrapolam a temporalidade antiga e chegam até nós metamorfoseadas em problemas ao mesmo tempo tão diferentes e tão similares àqueles de outrora.