No mês passado escrevi minha coluna sobre a história nos detalhes a partir de alguns elementos das histórias de John Steinbeck. Como foi possível observar, mesmo informações aparentemente menores possuem grande potencial significativo quando analisadas dentro de um quadro maior.
É provável que se analisássemos os detalhes pelos detalhes restringiríamos de forma brusca – para não dizer frustrante – a possibilidade de apreender significações ou problemas para serem discutidos. Por conta desse fato é que a análise de minúcias precisa vir acoplada a apreensões mais amplas e, nesse sentido, mais capazes de englobar o sistema de referência e circunstâncias nas quais elas foram originalmente concebidas.
O desafio do historiador não é somente, portanto, ser capaz de localizar esses detalhes e trazê-los a lume quando de uma abordagem historiográfica, mas também ser capaz de localizá-los em sua especificidade, visto que os detalhes – como é da natureza dos fragmentos diminutos – não costumam encerrar em si a totalidade de sua significação.
Empolgações introdutórias feitas, proponho a análise de outro pormenor que considero bastante significativo tanto para a literatura quanto para a história: a máquina de tortura na obra Na colônia penal, de Franz Kafka.
Ela certamente não é um detalhe quando se fala dessa obra especificamente. A máquina de tortura é um dos elementos de maior destaque em Na colônia penal, porém, do ponto de vista da História, ela é um elemento coadjuvante embora dotado de grande carga expressiva. Apesar do papel que ela desempenhe dentro da obra – que é, diga-se de passagem, aflitivo –, a escolha específica desse elemento em detrimento de um universo de outros possíveis é que a dota de um poder emblemático tão magistral quanto terrível.
Tomando como base o fato de as escolhas na construção literária, mais do que fortuitas e descuidadas, serem fruto de um conjunto de reflexões e de um intenso cotejar e re-cotejar do escritor – ainda mais em se tratando de Kafka –, não podemos tratar a escolha da máquina de tortura como algo menor ou desnudo de significações mais profundas. Considerando tal, e sabendo ser Kafka um sujeito cognoscente – isto é, capaz de apreender e reelaborar a realidade de maneira consciente –, não se torna ainda mais pleno de sentido sua escolha pela máquina de tortura?
Tendo ele refletido sobre o mundo e sua presença nele – atividades primordiais e fundamentais de todo o ser que conhece –, e tendo ele, também, estabelecido alguma lógica que o permitisse lidar minimamente com sua consciência, não é no mínimo curioso que, de todo esse processo, o resultado final, literariamente falando, tenha sido essa escolha? O mundo como Kafka o conhecia – desde sua experiência particular e subjetiva até a intersecção dialética dessa com a realidade histórica mais ampla – suportava essa escolha, do contrário ele não a teria feito. Para Kafka, por mais perturbado que ele o fosse e por mais que seus demônios internos e também externos o acossassem, a escolha da máquina de tortura como personagem fazia sentido.
As razões para isso eu me abstenho de conjeturar – sua extensão e complexidade devem ser tão perturbadoras quanto sua natureza. Mas, ainda assim, ainda que essa análise prime pela brevidade, a reflexão se faz interessante: porque, dentre todos os objetos que ele poderia ter escolhido, dentre todas as histórias que ele poderia ter escrito, dentre todos os personagens que ele poderia ter criado, dentre todas as concepções de literatura que ele poderia ter tomado como suas, porque ele escolheu justamente essa máquina para se constituir numa figura tão poderosa a assomar no horizonte dele e de todos os seus personagens?
A escrita, como bem notou Lígia Chiappini no utilíssimo livro O foco narrativo, envolve “problemas epistemológicos”, de modo que eu não consiga pensar na obra de Kafka sem sentir ao menos uma pontinha de angústia pela experiência de vida que ele deve ter tido uma vez que, baseado nela, ele produziu o pesadelo que é sua literatura. No conjunto de transformações do início do século XX, muitas delas tenebrosas, Kafka considerou relevantes o suficiente a violência, a culpa, a tortura, o aprisionamento, o terror, o pesadelo, a aflição, a angústia como chaves analíticas que permitiam penetrar o espírito do tempo e dos homens naquela realidade que ele vivia – ou padecia – cotidianamente.
Para a análise historiográfica, seja da literatura ou de qualquer outro produto do trabalho do homem, epígrafes são tão significativos quanto parágrafos inteiros, notas de rodapé encerram mistérios que discussões inteiras talvez não façam mais do que roçar levemente, sambaquis revelam informações que pinturas rupestres podem ter, convenientemente, deixado de fora. A hierarquização das fontes ou dos objetos de análise pode se mostrar uma das práticas mais perniciosas e prejudiciais ao historiador, principalmente pela constatação de que mais do que “um ou outro”, vale “um e outro”, sendo o “e” a complexa relação dialética entre eles e entre o mundo que havia à sua volta quando de sua existência.
Tendo contemplado a morbidez kafkiana e se perguntado sobre suas razões de ela assim o ser, qual angústia não nos acabrunha ao voltarmo-nos a um fato tão significativo quanto: o fato de Kafka ter se tornado um clássico universal. Quem sabe dizer quais assombrosos processos secretos não terão ocorrido para colocá-lo em tal patamar…
Lendo o começo de seu texto me lembrei que Morin fala do princípio hoologramático. Rapidamente: um fragmento contém a informação do todo e pode ser apreendido justamente por isso. Quando ele fala isso, quer dizer que não é preciso estudar toda a humanidade para perceber o que ela é, que existe, mesmo com toda a diferença, algo que une e faz com que possamos todos nos identificar como uma única espécie capaz de se autogerir e respeitar. Vem justamente daí seu princípio de uma ética mais universal, que não signifique a imposição de valores eurocêntricos, como aconteceu durante o primeiro processo de contato entre os continentes.
Coloquei isso, porque partindo de um ponto de vista diferente do que vc propõe, a literatura de Kafka pode ser entendida como uma extensa referência a algo mundial: a questão da culpa. Afinal, mais do que a tortura, que aparece em alguns textos apenas, a culpa é a constante de sua literatura. “O processo”, por exemplo, começa com a acusação e a busca desesperada pela declaração de inocência, mas nunca aparece qual é o motivo da acusação. Em “Na colonia penal” vemos o exercício, a pena, mas não sabemos qual a culpa. Mesmo n’ “O castelo”, um texto diferente, afinal, a culpa aparece se vc procurar, nas atitudes frustradas de K. Enfim, qual é essa culpa? Seria ela a responsabilidade pela crucificação de Cristo? Veja bem: Deus mandou seu filho para redimir nossos pecados e nós o matamos. É claro que todos nós temos uma culpa e uma dívida impossíveis de serem ressarcidas; vem daí, me parece, a universalidade de Kafka. Uma culpa dividida por todos até o fim dos dias e que não pode nunca ser paga ou perdoada. Seria por isso, talvez, que seus personagens tendem a se redimir durante a tortura e o sofrimento?
Olá Gabriel, tudo bem?
obrigado pelo comentário. Se vocè puder, eu apreciaria muito se tu me passasse o título desse texto ou livro do Edgar Morin, pois fiquei muito interessado nele. Recentemente comprei ‘Cultura de massas no século XX’ dele, e estou apreciando a leitura.
Tem um texto do Ginzburg que trata dos detalhes, sobre o qual pretendo falar no mês que vem ou no outro, e que tenho certeza de que vai gostar, aguarde e verás. É um texto belíssimo, uma reflexão muito pertinente e erudita sobre o ofício do historiador e sobre a vivacidade da historiografia ao atentar para as pequenas coisas.
Sobre o Kafka, eu diria que a universalidade dele, mais do que algo puramente subjetivo ou da natureza do homem, se dá pelo peso e pelo valor da culpa que parece acompanhar seres dotados de consciência, por mais distorcida que ela seja. A consciência – não só os valores éticos como o ato de conhecer – trazem implicações tão fascinantes quanto duras, como Sartre bem o notou através dos postulados do existencialismo.
Obrigado. O texto do Morin que vc está lendo é um pouco anterior a uma formulação mais concreta dos princípios da complexidade. Mas é uma maneira diferente de encarar um tema importante e vale a leitura, de qualquer forma. O melhor seria o “Introdução ao pensamento complexo”, que ele escreveu depois de terminar o método (que eu ainda não li inteiro, mas estou tentando, porque é realmente difícil). Mas se vc tiver tempo e paciência, o método é realmente o cerne do pensamento dele, o problema é que tem tantas implicações que não é um livro que a gente possa apenas ler e depois fechar…
Essa aproximação que vc faz do Kafka com o existencialismo foi uma coisa que o próprio Sartre tentou. Como sou sempre desconfiado com o Sartre, me pergunto se não foi mais uma tentativa que ele fez de se proteger no grande autor do que uma aproximação de fato… Mas digo isso porque realmente não gosto do Sartre…
Mas essa minha citação sobre a dívida universal, tirei de Deleuze e Guattari. E depois que li eles passei a prestar atenção nesse aspecto e realmente é impressionante. Não sei há quanto tempo vc não lê “O Castelo”, mas logo no início, quando descreve K, parece uma descrição de Jesus. E isso provoca uma interpretação totalmente diferente do texto. Não que seja uma alegoria religiosa, mas ela também está presente e me parece enriquecer mais ainda a leitura…
Olá Marcelo, me desculpe pela demora em responder teu comentário.
Acho que entendo o que você quer dizer, mesmo sem ter lido ‘O castelo’ ainda. A culpa, por mais histórica e socialmente mutante que seja, possui um grau de universalidade inegável, embora eu me sinta obrigado – no bom sentido, é claro – a dizer que esse caráter mutável e subjetivo seja tão importante de se ressaltar quanto a objetividade.
Quanto ao Sartre, estou contigo, temos de permanecer céticos com relação a ele e suas ideias, hehe.
Sobre o Morin, teu comentário só me fez ficar mais e mais interessado nas obras dele, e Método parece ser uma obra titânica, para ser lido com tempo e paciência para reconhecer suas mais obscuras nervuras. Você, que está lendo ou que tem mais conhecimento sobre, o que pode nos dizer dessa obra além da complexidade dela?