No caso de um escritor de vida tão breve como o Raymond Radiguet (1903-1923), retratado por Man Ray na foto acima, parece estranho falar de “obra prima”, porém é assim que é tratada a novela O diabo no corpo (1923), agora reeditada pela Penguin-Companhia das Letras para a nova coleção “Grandes amores”. É claro que há razões para essa consagração pública da obra, dentre elas, o fato de que Radiguet já era alguém bem conhecido por sua poesia e seu teatro nos meios literários parisienses no período anterior à sua morte. Sua segunda novela, Le bal du comte d’Orgel (1924), publicada postumamente, ainda não havia sido lançada, mas muitos já chamavam Radiguet de grande revelação literária da nação. Isso é resultado em parte de publicidade de seu editor, Bernard Grasset, mas também da leitura feita por contemporâneos seus, como Jean Cocteau e Paul Verlaine.

O jovem escritor francês, oriundo de um vilarejo nos arredores de Paris, certamente é alguém que já havia vivido experiências únicas à altura de sua morte, dentre elas as que são narradas em O diabo no corpo. Ainda que não seja um texto memorialístico, é fato que se trata de ficção de fundo autobiográfico, o que já rendeu estudos variados da crítica francesa.

Assim como o narrador da história, Radiguet era motivo de orgulho para seus pais burgueses, sendo o primeiro da classe, porém tudo isso muda quando chega à adolescência. Ele larga a escola e acaba por iniciar uma relação amorosa com uma jovem recém-casada, cujo marido foi lutar na Primeira Guerra Mundial. Na novela, há diferença somente em nomes e em algumas circunstâncias, que são introduzidas pelo autor a partir de narrativas que ouviu ao longo de sua vida. De resto, não há semelhanças, mas sim relatos idênticos à vida do escritor.

Ainda assim, persiste a questão: além do conteúdo polêmico, especialmente nos anos 20, o que há de tão especial nessa “obra prima” de Radiguet? Talvez sua juventude, seu vigor que nos transporta para uma realidade com uma moral própria. Logo na primeira página da novela, o narrador-personagem diz:

Nunca fui um sonhador. O que parece sonho para outros, mais crédulos, a mim me parece tão real quanto o queijo para o gato, apesar da redoma de vidro. No entanto, a redoma existe.

Ela se quebrando, o gato aproveita, ainda que sejam seus donos que a quebram e cortam as mãos.

Daí parte toda a ideia: ele vê a redoma, sua realidade, e quer vê-la quebrada a todo custo, não importando as consequências disso para si e para os outros. Não que fosse egoísta; parecia ser apenas a angústia da gaiola. Após anos sob os cuidados dos pais, dando-lhe motivos para dele se orgulharem, a vontade de conhecer a si mesmo por outras pessoas, mulheres, corpos era maior. Ainda assim, o narrador vê o “diabo” no corpo, esse símbolo da moral cristã. Há a consciência de que a polêmica de seus atos em sua vila (e no pensamento dos leitores) vem de sua imoralidade, porém ela parece surgir de uma necessidade de autoconhecimento. Há de se escapar da redoma de vidro.

“Mais vale ser vassalo do coração que ser escravo dos sentidos”, diz o narrador, divagando sobre as razões pelas quais se “deposita” a liberdade nas mãos do amor. O “grande amor” de Radiguet não é apenas aquele por si mesmo, como poderiam dizer. O rapaz quer superar o Marne, o rio de sua vila, ressignificá-lo, viver o amor pela liberdade no centro do mundo. Ele quer se livrar da escola, dos pais, do vilarejo e, no final, até mesmo de sua amante, num sentido de destruição tão próprio do amor, como vemos em tanta literatura desde a Antiguidade.

O amor sempre foi visto como corporal: associamo-lo ao coração, ao ritmo cardíaco, à dor e, ao mesmo tempo, à felicidade. Ele parece nos mover, nos motivar a ter ideias, repensarmos nossa posição diante dos outros. Inicialmente, o amor “anestesiava tudo que não era Marthe”, a amante do jovem francês, mas depois se percebe que ela é uma “criatura”, um objeto de amor. No final, resta o ciúme, não a dor da perda. Ele vê o funeral da amante como “festa para muitos”, não só para ele, como se fosse um momento de compartilhamento de sentimentos que somente ele pudesse aproveitar.

Trata-se de uma liberdade que aproxima sublime e grotesco, que traz o diabo para o sentimento mais “divino” de todos. O amante dessa obra de Radiguet é dos mais modernos, já que se firma como indivíduo, um servo do próprio coração, não mais da moral dos outros. O alvo de seu sentimento como simples propriedade, objeto pelo qual se cria desdém pelos outros que não o possuem, especialmente o marido de Marthe, no caso.

Acredito que daí surge a polêmica de O diabo no corpo. Essa “sensação” que se sentiu na época da recepção da obra ainda nos perturba. Talvez nos vemos demais no individualismo desse jovem amante, que logo no começo da obra se questiona: “O egoísmo das crianças é assim tão diferente do nosso? No verão, no campo, amaldiçoamos a chuva que cai, enquanto os agricultores anseiam por ela.”