Doris Lessing, no primeiro volume de sua autobiografia (Debaixo da minha pele, Companhia das Letras, tradução de Beth Vieira), identifica os obstáculos que se impõem àqueles que decidem narrar a própria história: “Impossível sentar para escrever sobre si sem sofrer o assédio de questões retóricas da mais tediosa natureza. Nossa velha amiga, a Verdade, é a primeira. A verdade… quanto contar, quanto ocultar?”. E acrescenta: “Contar a verdade a respeito de si é uma coisa, se você puder, mas e quanto aos outros?”

“A quanto aos outros?”. A pergunta é fundamental. Na série de livros em que narra detalhadamente a própria vida, Karl Ove Knausgård 1  não poupa os que lhe são (ou foram) próximos. Os leitores tampouco são preservados – todavia, a julgar pelo êxito comercial de Minha luta, não queremos nos manter a salvo. Não nos incomoda a confrontação com os aspectos íntimos da vida de um autor, nem, aliás, a questão ética por trás do ato de revelar a intimidade daqueles que já morreram e daqueles que, ainda vivos, não concordam com a enorme exposição. Num tempo em que a fronteira entre o público e o privado tende a assumir contornos vagos, nem sempre é fácil apontar quais revelações parecem excessivas e despropositadas. Quando ocupamos a posição do espectador que assiste a uma performance inclassificável e inusitada – mas aparentemente genuína –, parece natural que deixemos momentaneamente a avaliação crítica de lado para substituí-la pela total atenção. A capacidade crítica será restituída mais tarde, quando, afinal, teremos tempo para medir o impacto do que foi visto. Quanto maior o caráter polêmico de uma exibição, quanto mais privado um panorama ou informação nos parece, quanto mais visceral a encenação, tanto maior, e mais estupefata, a sua audiência. É o famoso fetiche por espiar pelo buraco da fechadura, por conferir o drama alheio e comparar com o que se vive. Se o clamor do artista por atenção for suficientemente interessante, portanto, responderemos bem. Longe de desencorajarem, então, os sórdidos segredos da família Knausgård só fazem contribuir para o enorme burburinho em torno da série. Com tradução do norueguês por Leonardo Pinto Silva, o primeiro de seis livros, A morte do pai, acaba de ser publicado no Brasil pela Companhia das Letras. O título Minha luta, o mesmo de uma obra assinada por Adolf Hitler, sublinha a intenção de Knausgård de polemizar e provocar.

Ao colocar a si mesmo como narrador e protagonista da série – que tem sido exaustivamente comparada a Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust –, ao retornar às cenas de sua infância, de sua adolescência e de sua juventude, Knausgård reacende o debate em torno da autobiografia. O tema é controverso, o que nos leva novamente à afirmação de Doris Lessing sobre a Verdade. A morte do pai é, com tudo o que isso implica, o que se pode chamar de narrativa autobiográfica. É difícil falar em autoficção, uma vez que esta, por definição, não estaria comprometida com os fatos tais como se sucederam. Apesar disso, é impossível medir a quantidade de Verdade contida em um relato autobiográfico em geral e neste em particular – o que sequer é relevante. Em A morte do pai, como em tantos outros livros (seja qual for o gênero a que pertencem), a vida real é transformada em material para um romance, e, portanto, adaptada aos critérios deste último. Duas passagens dão conta desse aspecto. Uma, genérica, lança alguma luz sobre o processo criativo de Minha luta: “Escrever é retirar da sombra a essência do que sabemos. É disso que a escrita se ocupa”. A seguinte é ainda mais reveladora, e ilumina tanto o assunto do primeiro livro quanto as dificuldades que parecem indissociáveis de qualquer escrita: “Por muitos anos eu tentara escrever sobre meu pai, mas jamais conseguira, decerto porque o tema era próximo demais da minha vida, e portanto nada fácil de transpor para outra forma, o que, naturalmente, é um pré-requisito da literatura. É sua única lei: tudo deve se sujeitar à forma. Se qualquer um dos outros elementos literários for mais forte que a forma, como o estilo, a trama, o tema, se algum deles prevalecer sobre a forma, o resultado será insatisfatório”.

Ainda que a forma fosse sua prioridade, Knausgård precisou enfrentar o dilema do conteúdo. O autor se viu, é claro, frente a frente com a questão de Doris Lessing: “quanto contar, quanto ocultar?”. E resolveu: contaria muito.

Karl Ove e o pai nunca foram próximos. A desconfiança mútua que está na base de seu convívio é alimentada não só pela lacuna existente entre suas gerações e pela hierarquia natural da relação pai-filho, mas antes por algo mais profundo. Severo, o pai vigia os dois garotos de perto e os deprecia continuamente. O mais velho, Yngve, sente ódio. Karl Ove, o caçula, é mais hesitante em seu julgamento. Seus sentimentos são conflitantes: mesclam curiosidade, temor, piedade e – algo inevitável em uma relação tão tensa – rancor.

A atmosfera, durante a infância de Karl Ove, é a mais carregada possível: seu pai é rigoroso, intransigente e emocionalmente distante dos filhos. Quando ele chega à adolescência, entretanto, as coisas começam a mudar. Ao mesmo tempo em que transita pelas descobertas típicas da fase – a primeira paixão, a primeira experiência sexual (que não estão, nesse caso, conectadas), o primeiro ensaio com bebida alcoólica, a tentativa frustrada de fazer parte de uma banda de rock que produzisse um som de qualidade –, Karl Ove nota uma mudança significativa na atitude do pai. As roupas se tornam menos conservadoras, a postura autoritária relaxa, o sujeito ensimesmado e austero dá lugar a um mais aberto e amistoso. Ele começa a beber esporadicamente, o que é incomum, e em seguida bebe sem qualquer controle. É a partir daí que tudo declina. Já adulto, casado e há anos morando longe de casa, Karl Ove recebe uma ligação de Yngve. Seu pai morrera.

O que se segue é uma catarse. Yngve e Karl Ove viajam até a cidade em que o pai viveu os últimos anos a fim de preparar seu enterro. Em regime de isolamento, o homem morava sozinho com a mãe, que sofria de demência senil. O lugar, como parece óbvio, está completamente inabitável. Centenas de garrafas se amontoam pelos cômodos, que não são limpos há um bom tempo. Aqui, Karl Ove não poupa o leitor dos detalhes mais abjetos da decadência do pai e da avó. Esta última, aliás, está tão desorientada que mal se dá conta da morte do filho.

Em um ritmo alucinado que revela seu conflito interno, os irmãos põem em ordem a casa destruída pelo pai morto. Eis o simbolismo: Yngve e Karl Ove arrumam, limpam e consertam a fim de 1) organizar seus próprios sentimentos e 2) apagar, do espaço físico e da lembrança, os vestígios da decadência paterna que macula o familiar casarão de sua infância. O cenário é então a cidade portuária de Kristiansand, alvo de descrições frequentes (e bonitas) do autor. A catarse, no entanto, é apenas um dos pontos abordados no livro – certamente o mais chocante –, e tem lugar apenas nas últimas páginas. Mais do que nela, Karl Ove se detém nos anos de infância e adolescência, no desabrochar e no autodescobrimento.

Das lembranças remexidas, qualquer que seja seu teor, Karl Ove retira belas reflexões – e sobretudo belas imagens. Sua escrita, clara e envolvente, tem inegável qualidade descritiva. Há passagens alongadas, que normalmente são compostas de sucessivas menções a atividades banais como pendurar o casaco, calçar as botas, acender um cigarro, abrir a porta do carro ou de casa, colocar o pó de café na cafeteira. O recurso tão presente na literatura feita de memórias, aquele de evocar lembranças fragmentadas cujos contornos indefinidos ou aspecto onírico só contribuem para sua indistinção ou inverossimilhaça, está ausente. Knausgård nos dá um realismo atroz. Um realismo que tem a força (e o intuito) de um tapa no rosto.

Não fica claro se, ao escrever e publicar os livros, um de seus objetivos é dar um sentido diferente ao turbilhão de lembranças – e enfim exorcizar ou conviver pacificamente com alguns demônios. Há, de qualquer forma, muitas e longas explicações. Na extensão nada modesta de Minha luta, o leitor, confrontado com tantos detalhes que fica difícil absorvê-los em sua totalidade (já que pode apreender tanto o que está em primeiro plano quanto o não dito), retém o que lhe parece importante e significativo. Como eu fiz, e aqui é mais prático citar: 1) Karl Ove Knausgård narra sua história com aparente (e desconcertante) honestidade. Certamente não há autoindulgência. 2) As bandas citadas ao longo do livro, especialmente quando o autor fala de sua adolescência, compõem uma boa trilha sonora para a leitura. Para quem viveu nos anos oitenta e ouvia suas músicas favoritas num walkman, eis o saudosismo; para quem tem ou teve uma banda, um prato cheio para apontar erros e acertos de Karl Ove e seus amigos pouco talentosos. The Clash, The Police, The Cure, Joy Division, New Order, The Chameleons, Iggy Pop e Velvet Underground eram alguns dos artistas favoritos do escritor. Já a sua banda juvenil tinha o seguinte (e imutável) repertório: “Smoke on the Water”, Deep Purple; “Paranoid”, Black Sabbath; “Black Magic Woman”, Santana; “So Lonely”, The Police. No quesito cinema, filmes do Bruce Lee, além de “A última festa de solteiro e um do Dirty Harry”, ocupam a atenção de Karl Ove e outros jovens. 3) Chama a atenção a relação ambígua de Knausgård com as artes visuais. Formado em arte e literatura, o autor raramente consegue unir o parecer de especialista à opinião (apreciação) pessoal. Acontece com frequência: embora saiba que o que tem diante de si é excepcional, ele não consegue experimentar qualquer arrebatamento. Ou: mesmo que, do ponto de vista técnico, a obra não seja mais do que mediana, ela causa em Karl Ove intensa comoção. 4) O autor tem uma enorme fixação por nuvens, que frequentemente figuram em suas descrições do ambiente que o circunda. Esta, uma das mais bacanas e significativas, merece ser citada: “(…) dificilmente se passava um dia sem que o céu se enchesse daquelas fantásticas formações de nuvens, cada uma delas iluminada de uma maneira única e nova e, como aquilo que sempre se vê é aquilo que não se vê nunca, vivemos nossa vida sob um céu em permanente mutação sem que lhe dediquemos um olhar ou um pensamento que seja. E por que deveríamos? Se as diversas formações tivessem algum significado, se, por exemplo, nelas estivessem ocultos sinais e mensagens para nós que fosse importante interpretarmos corretamente, uma atenção contínua ao que acontece lá em cima seria inevitável e compreensível. Mas claro que não era assim, as diferentes formas e cores das nuvens não significavam nada, o seu aspecto em momentos distintos dependia totalmente do acaso, portanto, se as nuvens sinalizavam alguma coisa, era a falta de sentido na sua forma mais pura e completa”. Em dado momento, Karl Ove comenta como, em um livro com reproduções de quadros de John Constable, uma pintura específica – de nuvens – faz com que se sinta emocionado e perturbado. Constable, como Knausgård, também deve muito ao céu. 5) Os personagens periféricos de A morte do pai são bastante interessantes. Knausgård lhes dá um lustro que os torna, mais do que figurantes, indivíduos curiosos. Os participantes de uma reunião de jovens ativistas políticos, por exemplo, são descritos como “gente entediada vestida com suéteres entediados e calças horríveis”. 6) A melancolia talvez seja o sentimento dominante em A morte do pai. Neste contexto, a escolha da capa parece acertada. Há o cinza invernal e algo triste, as nuvens (claro), o chalé vermelho que contrasta com o restante da cena. 6) O primeiro livro de Minha luta já revela sua tendência: narrar a vida comum, a vida que não segue o curso planejado, a vida que carrega todas as suas indignidades, a vida cujas tarefas insignificantes e tediosas não podem ser abandonadas pela metade ou ignoradas, a vida cujas relações são complexas e onde qualquer entendimento é difícil. A vida que acaba repentinamente. 7) As cenas descritas e jamais vistas não desgrudam facilmente das retinas. Rios, estradas desertas, árvores que balançam com o vento, a neve. Tudo ali, diante dos olhos. E em abundância.

Sobre o último item: fica claro que o exterior – a forma das coisas, a maneira como se movimentam e o modo como estão dispostas – exerce enorme influência sobre o autor. É possível que isto se deva à sua formação em arte (que, de uma forma ou de outra, contribui para o tom do romance), mas, aparentemente, esta sempre foi a postura pessoal de Knausgård diante da vida. Suas sensações são normalmente descritas em conjunto com o tom acinzentado do asfalto, com a opulência dos prédios vizinhos, com a cadeia de montanhas localizadas nos limites da cidade, e este realismo, por si só, é mais do que um recurso estilístico. “Sentimentos são como água, sempre adquirem a forma do meio que os circunda”, escreve Knausgård. Impossível não evocar a máxima de Heidegger: “A condição do homem é a de estar ali”.

E aqui cabe, novamente, uma evocação do que escreve Doris Lessing em Debaixo da minha pele. Mais adiante em seu livro, Doris faz outra observação a respeito das narrativas autobiográficas: “Dizer a verdade ou não, e como dosá-la, é um problema menor do que o da mudança de perspectivas, porque enxergamos a vida de modo diferente em diferentes fases; é como escalar uma montanha enquanto a paisagem vai mudando a cada curva da trilha”. Com suas abundantes descrições de cenas em movimento e estados de espírito oscilantes, A morte do pai tem, por outro lado, seu aspecto estático: precisamente o olhar de Knausgård, congelado para sempre no período em que redigiu o livro. O próprio autor terá, daqui a alguns anos, a chance de revisitar vários passados: o passado de sua infância e juventude e o passado, possivelmente doloroso, que corresponde ao período de elaboração de Minha luta.

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“A vida ali era tão regular e cadenciada que poderia ser compreendida tanto através da geometria como através da biologia. Difícil crer que pudesse estar ligada à euforia, à agitação, ao caos exuberante encontrados em outras espécies, como numa população excessiva de girinos ou de alevinos ou de larvas de insetos, onde a vida parecia brotar de um poço inexaurível. Mas assim era. Caos e imprevisibilidade representam as condições tanto para a vida como para o seu declínio, uma é impossível sem o outro, e, mesmo que empreendamos quase todos os nossos esforços para tentar evitá-los, não é preciso mais que um breve instante de desespero para que vivamos à sua luz, e não à sua sombra, como agora. O caos é uma espécie de força de gravidade, e o ritmo que se pode intuir na história, na ascensão e queda de civilizações, talvez seja causado por isso. É notável a semelhança entre os extremos, ao menos num certo sentido, pois, tanto no caos absoluto como num mundo rigorosamente regulado e cadenciado, o indivíduo não é nada, a vida é que é tudo. Assim como ao coração não importa saber por qual vida ele bate, à cidade não importa saber quem realiza suas variadas funções. Quando todos aqueles que hoje passeiam pela cidade tiverem morrido, daqui a cento e cinquenta anos, digamos, o burburinho de gente indo e vindo vai ecoar obedecendo aos mesmos padrões de sempre. A única coisa nova será o rosto das pessoas, embora não tão nova, já que serão seres parecidos conosco.” 

  1. O autor estará presente na Flip 2013, na mesa 8, “Ficção e Confissão”, que ocorrerá na sexta-feira (05/7) às 17:15.