por Marina Araújo

Lydia Davis teve seu primeiro livro lançado no Brasil este ano e está na Flip, onde participou de uma mesa sobre tradução e hoje fará parte da mesa 14, em que discutirá os limites da prosa com John Banville.

Pela manhã da ensolarada quinta-feira de Paraty, Davis, que carrega nos gestos e tom de voz baixo a delicadeza de sua escrita, conversou com o Posfácio sobre sua esta atenção preciosa aos diversos pedacinhos do mundo: de lagartas e moscas a crises conjugais e existenciais.

Ler Lydia Davis é muito mais um exercício de percepção das possibilidades da prosa, ou ainda, que as variações da forma do conto geram um alargamento da sensibilidade da leitura. O livro Tipos de Perturbação, publicado pela Companhia das Letras este ano, é uma amostra de sensibilidade peculiar. Uma reunião de contos lançada originalmente pela Farrar, Straus and Giroux em 2007, engloba uma gama de temas intimistas e um malabarismo que testa a flexibilidade do gênero e, em alguns extremos, chega muito mais próximo da poesia. Um texto que pode ser definido como prosa e poesia tem já valor intrínseco pela virtuose da escritura. No caso de Davis, é adicionada uma carga elétrica de intensidade de sentimentos e evocação de emoções. Seus pequenos textos por vezes tratam de objetos que beiram o limite da trivialidade, como em “Mão”: “Além da mão que segura este livro que estou lendo, vejo outra mão, minha mão sobressalente”. A sutileza poética surpreende o leitor e é perceptível o quão frutífero é brincar com gêneros, quando a virtuose é bem aplicada.

Foto: Felippe Cordeiro/Posfácio
Foto: Felippe Cordeiro/Posfácio

Seus narradores quase sempre são mulheres com uma autoconsciência amplificada pela voz que temos acesso na narrativa; pensamentos obsessivos sobre suas ações e as dimensões que tomam no mundo. No entanto, embora uma leitora mulher possa pensar que os personagens da autora tocam fundo em uma sensibilidade balizada pelo gênero, Davis não encoraja esta ideia.

“Eu sei que há uma história minha contada pelo ponto de vista de um homem, mas eu não sei se há mais. Mas esta veio quase toda da vida real e eu queria disfarçar a história para que os personagens não se reconhecessem. Todo o resto da história era igual, era meu ponto de vista, de uma mulher, mas contada por um homem.”

Quando homens comentavam que o conto realmente expressavam a maneira como eles pensam, Davis chegou à conclusão de que “não somos tão diferentes quanto achamos que somos.”

Davis também descartou outra noção de seu trabalho, que James Wood expressou em uma resenha elogiosa na New Yorker em 2009 dizendo que “o egoísmo é seu real tema”. O egoísmo realmente parece ser um tema central. Nas interações dos personagens como a  mãe com suas filhas ou as tensões com um ex-marido, há material valioso para tratar desta peculiaridade da condição humana. Mas Davis deixa claro que a natureza das relações em sua brutalidade, tratada na narrativa em uma dissecação minuciosa, é apenas mais um objeto do interesse do seu olhar.

Davis tem um olhar analitico das posições sociais e máscaras identitárias de seus personagens. Esta reflexão, surpreendentemente, é associada a uma perspectiva intuitiva, quase descompromissada, do mundo. Por isso as perturbações de que o livro trata podem ser representadas com leveza e elegância. E talvez isso explique o uso heterodoxo da forma nos contos de Davis. Segundo ela, sua escrita não é conscientemente decidida; “Eu reajo quase fisicamente ao tema. Então é uma decisão não pensada de que o texto deva ser curto. Eu tento não pensar muito sobre como eu vou escrever, o texto escolhe seu tamanho, sua própria estrutura e ritmo”.

Davis ainda enfatiza que seu único romance, publicado em 1994, veio do fato da história ser muito grande para um conto. “O tema vem antes. Eu não digo: eu quero escrever um romance. Este é um estágio seguinte”.

A sensação de que estamos lendo uma escrita intuitiva, física, é certamente um dos grandes encantamentos da obra de Davis. E a forma da escrita complementa a sensação que o conteúdo evoca. Em Colaboração com a mosca, lemos “Eu pus a palavra na página, mas ela acrescentou o acento”. A leveza da mosca é a leveza da frase, o ritmo do voo casual da mosca o mesmo que seu delicado arranjo de palavras. Há a brutalidade da autorreflexão das perturbações emocionais da vida, como em “Bons Momentos”.

“O que acontecia com eles era que cada mau momento produzia uma sensação ruim, que sua vez levava a outros maus momentos, até que sua vida em comum ficou saturada de maus momentos, tão saturada que quase nada conseguia crescer naquela terra escura”. O peso do conto abate também, fisicamente. Davis joga com o gênero do conto para tratar deste amplo mundo de leveza e peso. Por isso, para ela, o egoísmo que Wood menciona não abarca sua obra: o tema é “quem você é, o que é este “eu” e como você define este “eu”, em um momento você está agindo como uma criança, em outro momento você está sério, sua identidade muda”.

Um dos contos verdadeiramente perturbadores, sobre medo e obsessão, foi publicado em seu livro de 1986, Break It Down, chamado “The Fears of Mrs.Orlando”. Nele, uma senhora aflita com os perigos do mundo dá de cara com o corpo de um homem que havia morrido afogado em uma praia na Flórida. Seu corpo estava coberto com páginas de jornais, e uma multidão reunida à volta dele, silenciosa e encarando o objeto inerte, levantava ocasionalmente o jornal para olhar mais atentamente. A imagem descrita por Davis é forte, e o conto se imprime na memória.

Enquanto falamos sobre as impressões dela sobre o Brasil, soube da sua primeira e única visita ao Rio de Janeiro, com 17 anos. Suas principais lembranças, me disse, eram as pipas voando na praia, o mamão que ela comeu e “então havia um homem que havia se afogado na praia, algo que eu nunca havia visto”. Respondendo a minha pergunta se esta lembrança havia inspirado o conto de 1986, ela me disse, sorrindo surpresa: “sim, o conto vem deste incidente, porque ele estava coberto por jornais e as pessoas estavam espiando discretamente embaixo do jornal para olhar o corpo… então isto é do Rio.” À parte do prazer de descobrir que uma das suas histórias foi inspirada no Brasil, não deixei de ter a sensação de que, no final, ao ler Davis estamos, na verdade, passeando pela paisagem de sua memória. E que o passeio, vívido em toda sua intensidade, é também extremamente prazeroso.