Em um pequeno ensaio, David Foster Wallace garante que o autor de Na Colônia Penal é hilário, mas poucas pessoas conseguem penetrar nessa camada de suas histórias devido à inércia da ironia fácil. A sensação que ficou após a mesa 7, realizada ontem em Paraty com as participações do italiano Roberto Calasso e da professora de filosofia da PUC-SP Jeanne-Marie Gagnebin, é quase certeira: ler Kafka é querer e precisar ler Kafka mais de uma vez.

Roberto Calasso explicou que Kafka e Baudelaire possuem características raras e fundamentais. Dentre elas, a principal é justamente fazer o leitor se sentir envolvido a partir da primeira frase da obra, como é o caso de A Metamorfose e O Processo do autor tcheco. Independentemente de gostar ou não do autor, o leitor está preso à leitura, pois as palavras e frases tocam o íntimo deles. Além dos dois, apenas Nietzsche consegue essa proeza. Calasso explicou que dois de seus livros lançados no Brasil fazem parte de uma série de sete volumes. KA é o quarto volume e A folie Baudelaire, do qual o autor leu o primeiro capítulo para abrir a mesa, é o de número seis, ambos lançados pela Companhia das Letras.

 

Não entende Kafka quem não o leva ao pé da letra (Roberto Calasso)

 

O autor italiano, que conviveu com grandes artistas e pensadores durante a juventude, afirmou que Kafka é um dos escritores a alcançarem uma marca quase inalcançável: um timbre chopiniano (como as músicas do compositor polonês)o que torna sua prosa inconfundível e marcante para qualquer leitor veterano ou de primeira viagem.

Jeanne-Marie citou uma ligação entre Kafka e Proust e a procura incessante sobre o “eu” (ich), trazendo à luz a dificuldade de saber de fato quem são seus personagens. A professora ainda defendeu a tese sobre os objetivos do autor tcheco em seus contos e novelas. Kafka seguia um caminho simples, cheio de desvios e focado na criação obstáculos impedindo, de certa forma, a compreensão e o desfecho, como uma mensagem com falhas de transmissão, interferências e frequências cruzadas. Calasso concluiu que K., personagem de O Processo, não tem um perfil definido, mas passa por uma transformação ao longo da obra, o que o torna bem mais complexo, profundo e completo. Para o autor italiano, Kafka era uma antena captando a metafísica.

Apesar do tema da mesa se dividir entre dois autores, Franz Kafka é quem esteve no holofote em grande parte do tempo, e também aquele que gerou dois pontos de vistas contrários dos convidados – ainda mais quando o assunto girou em torno das alegorias teológicas do autor. Entre Gagnebin e Calasso abriu-se um abismo quando a professora da PUC tentou simplificar sua visão sobre mitologia e deuses para o público. O autor italiano mostrou-se irredutível às observações e expôs sua opinião sobre o pouco que grande parte das pessoas sabe sobre mitologia, teologia, etc., deixando transparecer que apenas ele está certo.

Um dos pontos altos e grandiosos foi a análise de como o passado influencia o presente através da morte feita por Jeanne-Marie. O tema Auschwitz foi trazido à tona para explicar o grande número de trabalhos sobre o assunto. Quando uma morte não é anunciada, mas ignorada, a história escrita é uma maneira de encontrar túmulos metafóricos para desvendá-la. Em miúdos, a morte faz propagar uma ideia, ou história, para frente e para sempre. Sem a morte não existiria escrita e tudo se tornaria enfadonho.

Ainda bem que a morte nos persegue a vida toda.