Fumar e filmar são parecidos.

Foi na minha primeira semana no Rio de Janeiro que encontrei Eduardo Coutinho. Àquele tempo fazia pouco que me apresentaram seu Cabra Marcado para Morrer (1985), hoje reconhecido como obra máxima dos documentários brasileiros, iniciado na década de 60 como um longa de ficção, interrompido pelo Golpe Militar e finalizado duas décadas depois, com a reabertura política.

Aparências enganam, e aquele senhor cruzando o largo São Francisco a passos lentos, cuidando para não tropeçar nos paralelepípedos irregulares do centro da cidade e deixando atrás de si um traço de fumaça de seus infinitos cigarros nem de longe se fazia saber um dos cineastas mais vigorosos de nossa história.

Geralmente pensamos que nossos ídolos exalam um brilho supra-humano, que carregam uma aura mágica que os destacam na turba. Coutinho é um homem simples, um senhor de feições engraçadas, com um icônico suéter jogado sobre os ombros e cujos pelos brancos da barba e cabelo contrastavam com o óculos preto de aro grosso e lentes grandes .

Nasceu em 1933 e iniciou-se no Cinema com produções de ficção, por meio do Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes (UNE). Dessa época são O Homem que Comprou o Mundo (1968) e Faustão (1971), filme de cangaço inspirado em obras de Shakespeare e produzido por Leon Hirszman.

Saber contar é essencial, mesmo que seja banal.

Ainda que não tenha sido sua primeira experiência no gênero, Cabra Marcado Para Morrer fixou sua transição definitiva aos documentários. Talvez o trauma das filmagens interrompidas pelo regime militar, junto à perseguição à equipe e aos personagens do filme tenha sido suficiente para direcioná-lo definitivamente a produções mais cruas da realidade sem maquiagem.

Convidado da mesa 12 na Flip 2013 (cujos trechos da conversa estão destacados nesse artigo), Eduardo Coutinho, sobre o episódio de Cabra…, disse que ao acordar naquela manhã de 1º de abril de 1964 e saber do Golpe sentiu-se aliviado, pois “teria mais tempo para pensar nas próximas sequencias do filme. Talvez um ou dois dias” – mas não demorou muito para perceber que os militares iriam se manter no governo “um pouco mais do que isso”.

Em 1985 o diretor lançou Santa Marta – duas semanas no morro, subindo a favela carioca com a equipe de filmagem para entrevistar os moradores e apreender suas crenças, visões de mundo, medos, sonhos e esperanças. Nesse filme, reforça seu Cinema-de-conversa, estilo simples de guiar as entrevistas como uma conversa, frente a um cenário banal da realidade cotidiana (uma cozinha, um bar, uma igreja, uma favela…). Também desconstrói o preciosismo técnico da fantasia do Cinema, com takes que muitas vezes parecem relaxados, revelando a equipe de filmagem, reflexos da câmera, sombras e o próprio diretor.

Seguindo essas características, que logo se fixaram como seu estilo próprio, nos anos seguintes Coutinho passeou por diversos assuntos: O Fio da Memória (1991) nos duzentos anos da Abolição, com a belíssima narração de Milton Gonçalves que começa com a frase: “O Brasil já foi roça de Portugal”; Boca de Lixo (1993) no lixão de Itaoca, em São Gonçalo (RJ); Santo Forte (1992) sobre o sincretismo religioso brasileiro, explicando diferenças entre o candomblé e a umbanda e encontrando curiosas histórias, como a de um terreiro liderado por uma mãe de santo francesa; Edifício Master (2000), um dos documentários mais vistos do país, um retalho da vida dos moradores de um condomínio de conjugados de Copacabana; Peões (2004), do início do governo Lula, reencontrando metalúrgicos do ABC paulista que participaram das históricas greves dos 70 e 80; Jogo de Cena (2007), que saltita entre a realidade e a ficção, mesclando relatos reais e interpretações de atrizes famosas e amadoras.

Contudo, importante perceber que uma constância em suas obras é que a temática se dilui (e às vezes até se perde) em meio ao vigor de personagens que são verdadeiros e literais achados ao acaso, como em O Fim e o Princípio (2006), quando o diretor partiu ao interior do Nordeste simplesmente buscando boas personagens que contassem boas histórias – bem sucedendo na empreitada, pois o filme é um primor. Em resumo, como um dia ele mesmo disse, o que importa em seus filmes são as pessoas.

Se eu fosse eleito ditador do Brasil, acabaria
com as concessões públicas [de televisão] às igrejas e seria deposto no outro dia por um milhão de evangélicos.

Eduardo Coutinho não apenas tem uma filmografia vasta, como também é um homem vasto. Vê-lo falar sobre a carreira, a vida e o que mais aparecer na pauta é uma experiência valorosa não apenas para os fãs, mas para qualquer um que goste de altas doses de ironia, recheadas por repentes de genialidade.

Durante o debate, enviei-lhe uma pergunta pedindo justificativa a uma declaração passada onde ele havia dito não escrever “por recomendações médicas”. Sua resposta: “Escrevo com ódio, mas escrevo. Mas é isso aí, não escrevo”.

Mostrando-se bem humorado e com brincadeiras que pareciam planejadas, quando perguntado se algum dia abandonaria seu vício frenético de fumar três (!) maços de cigarro por dia, soltou a pérola:

Fumar é um troço budista, você aceita a vida (…). Eu torço pra continuar imortal, mas contribuo para não ser.

A sessão de autógrafos – de O Olhar no Documentário, edição limitadíssima de 200 exemplares, editada pela CosacNaify apenas para a Flip, com textos de Ferreira Gullar, entre outros – que se seguiu ao debate foi um prazer extra a quem se dispôs a encarar a fila. Assim, desde a Flip 2013 e até o fim de meus dias cinéfilos poderei dizer que Eduardo Coutinho – mesmo tendo escrito meu nome errado – me deu uma dedicatória em que se lê: “Para Volkof, que é um cabra marcado para morrer”. Um gênio!

Metalinguagem na Flip: Coutinho se vê em um de seus filmes.
Metalinguagem na Flip: Coutinho se vê em um de seus filmes.