Depois de ler Barba ensopada de sangue, romance publicado no ano passado, decidi que Daniel Galera era um escritor ao qual eu deveria dedicar mais atenção. Não somente porque ele tem coisas muito interessantes a dizer, mas também porque creio que sua narrativa é de uma precisão e de uma fluidez dignas de nota. A junção dessas duas características – para não listar aqui outros méritos – faz com que seus livros sejam, a um só tempo, histórias com significados em suas profundezas, e livros extremamente agradáveis para se ler. Uma conjunção dessas não se encontra todo o dia.
Foi como um desdobramento dessa decisão que resolvi encarar Mãos de cavalo, romance publicado em 2006, e não encontrei senão aquela narrativa fluida, leve e ao mesmo tempo repleta de detalhes que havia encontrado em seu outro livro. Embora tenha menos páginas e se valha de idas e vindas no tempo ficcional, Mãos de cavalo possui algumas marcas idiossincráticas – que afirmo provisoriamente por ter lido somente dois livros – que, até o momento, se mantém, na minha opinião, como expressões de estilo que denotam um exercício de escrita que certamente tem uma trajetória e uma reflexão consideráveis.
Através de capítulos que alternam distintos momentos da vida do protagonista, Hermano “mãos de cavalo”, Galera vai contando uma história que se passa em terras gaúchas e que constrói uma jornada biográfica e ontológica do personagem. A narrativa de uma infância recheada de saudosas referências dos anos 70 e 80 alterna-se com episódios de uma meia-idade marcada pelos dilemas tipicamente seus – a modorra da estabilidade, o acabrunhamento da rotina –, ao mesmo tempo em que são ambas recortadas por capítulos dedicados à adolescência e suas loucuras, à juventude e suas situações-limite e o batismo de fogo que é o ingresso na vida adulta.
Embora minha sinopse e resumo dos eventos do livro soe bastante aleatória e generalizante por conta do espaço e dos propósitos desse texto, esse não é o caso do livro de Galera. O escritor gaúcho teve todo o cuidado na escolha dos eventos a serem narrados, buscando acompanhar as angústias de Hermano desde a tenra infância, passando pelo cotidiano com os amigos, as experimentações da puberdade, as dificuldades do vestibular, até a faculdade de Medicina, a especialização em cirurgias estéticas, o casamento e a paternidade. Encontra-se a percorrer o livro um comedimento que não se afoba em chegar logo ao fim, há a paciência em destacar pequenos sentidos e significados através das pequenas coisas, dos símbolos obscuros, das descrições pormenorizadas e dos eventos tão corriqueiros quanto reveladores.
O protagonista está em uma constante busca. Suas angústias e alegrias têm algo de essencial que consta na substância mais básica da vida, embora se manifestem de formas diversas. Hermano busca na escalada – na prática do alpinismo – uma conquista de repercussões físicas e espirituais, algo que sua vida cotidiana ou sua profissão de apresentações superficiais não lhe permitem experimentar de outra maneira. Há qualquer coisa de Hemingway na busca dessas provações.
Além da escolha dos pontos biográficos chave para dar corpo à história, Galera se esmerou em descrevê-los com detalhes e vivacidade. Ele não subestima o poder de uma imagem bem descrita, de uma situação explorada em suas minúcias ou do desdobrar de uma emoção, sentimento ou estado de espírito num personagem. Não é uma questão de quantidade ou de virtuosismos verborrágicos, trata-se da concepção de que, por mais instintivas que sejam certas percepções na leitura, uma boa descrição evita que elas se esfalfem em construções muito esquemáticas ou conceituais, não raro vazias em suas pressuposições lacunares. A abundância de detalhes delineia personalidades e constrói os personagens e as situações, o escritor dá a chance de o leitor se inteirar sensitivamente no ambiente ficcional, sem pressupor, no entanto, que seja necessário dizer tudo.
Mãos de cavalo tem um mérito que, em minha opinião, tem de ser destacado: a aposta que faz no valor de uma boa história numa apresentação mais clássica ou, se preferirem, tradicional. A história de Hermano “mãos de cavalo” não precisa de malabarismos narrativos ou de virtuosismos de caráter modernista para ser uma boa história. Ela é boa por ousar se valer da narrativa clássica e por expressar sensibilidade em sua abordagem acerca do homem – objeto de análise e retrato da literatura em primeira e última instâncias.
Assim como Hermano consegue ser um ás da cirurgia plástica apesar das suas “mãos de cavalo”, Galera também conseguiu escrever uma história que não possui os mais intrincados e labirínticos meandros da literatura experimental, mas que, nem por isso, deixa de ser sensível, humano e muito bem escrito. O valor das boas histórias, apesar de sua historicidade latente e candente, tem algo de universal.
Muito legal sua resenha, Lucas! Mas, pensando no seu penúltimo parágrafo, será que podemos dizer que ambas o livro possui uma estrutura tão tradicional assim?
Os saltos que o livro dá, na história de Hermano, apresentam uma estrutura, querendo ou não, refinada. (Acho particularmente interessante a forma como o Galera intitula esses capítulos, visto que, nas passagens da vida atual de Hermano, os capítulos são marcados a partir das horas…)
E ao mesmo tempo, entendi bem onde você quis chegar (e tive a mesma impressão). É como se o Galera quisesse, no final das contas, contar uma história comum de forma comum — mas simplesmente pegando a folha temporal e fazendo sucessivas dobras na mesma. O que, é claro, não deixa de ser algo bastante icônico.
Falo mais ou menos assim: a narrativa tradicional é, basicamente, aquela narrativa centrada num personagem que cative. Um personagem que, conforme os leitores esperam, tenha personalidade.
Mas não é incrivelmente irônico como o Galera cria toda uma narrativa centrada num personagem que não tem uma — ou que, antes, busca de toda forma criar uma?
Desculpe pela demora em responder, só notei agora que não estava mais recebendo e-mails acusando comentários nas minhas resenhas, hehe.
Obrigado pelo comentário, Mavericco, e me surpreende que você leia algo além de clássicos, hehe.
Quanto ao Galera ter uma estrutura refinada, concordo contigo quanto ao esmero, mas tenho de insistir no fato de que ele não subverte ou transgride convenções literárias minimamente tradicionais a cada página ou a cada situação descrita. Ele não é tão instintivo ou lacunar. Mas acho que isso você entendeu, né? E fico feliz em encontrar eco para tais opiniões e impressões, valeu mesmo.
A única coisa que não entendi é:
“Mas não é incrivelmente irônico como o Galera cria toda uma narrativa centrada num personagem que não tem uma — ou que, antes, busca de toda forma criar uma?”
Lucas. Você escreve organicamente, tipo com o fígado.
Adorei o texto.
Cami.
Puxa, obrigado mesmo Camila. É recompensador ler comentários como o seu, só dá mais vontade de escrever com o fígado, hehe.
A narrativa é, sem dúvidas, o ponto mais forte do livro; no entanto, a soma desta qualidade com a necessidade do protagonista demonstrar brio e coragem culminam na melhor obra do Galera, principalmente pela intensidade de sentidos e significados que o final do livro traz. É por isto que ter referes a Hemingway?
É isso sim, Ricardo. Mas vai além, a aventura do livro, o desafio físico e a vertigem existencial são formas de lidar com um marasmo que grassa a vida comum, aquela que se vive todo o dia, que a busca muscular tem qualquer coisa de filosófica, como se respondesse a uma ânsia mais profunda do que a sensação de adrenalina diante do perigo. Testar a limitação do corpo é parte importante, mas testar os limites do espírito ao romper com a continuidade e a segurança do cotidiano geram adrenalina ontológica.
Acabei não recebendo a notificação do recebimento desse comentário e já se passou bastante tempo, mas se quiser, tem um texto que escrevi sobre o Hemingway tentando aclarear essa questão:
https://posfacio.com.br/2013/07/12/a-historia-nos-detalhes-parte-iii/