O tamanho não importa, dirão alguns. Peço licença para concordar com essa afirmativa. Apesar de preferir os maiores, são os pequenos que têm mantido vivo o meu interesse — o que talvez se deva a uma sucessão de acasos felizes. Falo de escritos ficcionais, é claro. Já mencionei o quanto me desconcertou um certo conto de John Updike (“Uma outra vida”) ao qual se juntam um de Aleksander Hemon (“Stairway to Heaven”), um de Cynthia Ozick (“O xale”) e vários de Lydia Davis. 

O verão sem homens, romance de menos de duzentas páginas da norte-americana Siri Hustvedt, é o mais recente causador de um curto-circuito, i.e., pensamentos obstinados sobre assuntos diversos e normalmente confusos, o que resulta numa quantidade absurda de artigos empilhados e lidos pela metade, de livros abertos sobre a cama e de anotações que, para alívio geral, nunca mais serão retomadas. Uma tenacidade de causa desconhecida, voltada para vários pontos e sem resultados práticos. Uma obsessão.

(Basta dizer que não é possível manter a isenção ao discursar sobre o objeto de uma obsessão, o que significa, em outras palavras, que insistir na imparcialidade é o mesmo que esperar pelo fracasso. Consequentemente, o texto que você está lendo não é uma resenha. É uma coleção de aleatoriedades a respeito de um bom livro.)

(Um livro bonito e feminista.)

Começa quando Boris Izcovich, “neurocientista internacionalmente reconhecido”, resolve propor a Mia Fredricksen, poeta, uma pausa (a palavra é essa) no casamento de trinta anos. Uma colega de laboratório de B.I., francesa e vinte anos mais nova do que M.F., é o catalisador desse pedido. A sensível Mia tem um surto psicótico e é carregada para um hospital psiquiátrico.

Isso não se parece em nada com um romance feminista, alguém poderá dizer. M.F., abandonada e magoada por um homem; M.F., trocada (figura passiva) por uma mulher mais jovem; M.F., que vê naufragar o seu conceito de casamento monogâmico; M.F., que encarna o ideal da poeta sensível enquanto o marido devota a vida à ciência. Bom, acontece que o feminismo não chega a rejeitar por completo o romantismo (a escolha da palavra vai fazer sentido mais adiante), os modelos pré-fabricados de se relacionar ou qualquer coisa que o valha. E, ainda que rejeitasse, não seria tão simples chegar a uma conclusão. O argumento inicial não tira de O verão sem homens o rótulo de feminista. E o motivo é bem óbvio: a história importa menos do que o modo de contá-la.

“era uma vez uma mulher/ e ela queria falar de gênero”, diz Angélica Freitas em Um útero é do tamanho de um punho (Cosac Naify). Era uma vez Siri Hustvedt, e ela queria falar de gênero. Siri Hustvedt, casada com o também escritor Paul Auster; Siri Hustvedt, que talvez permaneça (injustamente) à sombra do marido. Siri Hustvedt escolheu falar de gênero em O verão sem homens, e, para isso, resolveu que o melhor seria recorrer à provocação. Mia, a narradora, é altamente irônica e interage com frequência com o leitor. Poderia facilmente ser um romance limitado e engraçadinho, mas não.

Ainda nas primeiras páginas, Mia recupera parcialmente a sanidade, recebe alta e decide passar uns tempos em sua pequena cidade natal no Minnesota (estado em que Siri Hustvedt cresceu). Para tanto, aluga uma casa perto do lugar — uma espécie de lar para idosos — onde vive sua mãe octogenária. O título já adianta: é verão. Seus novos vizinhos, um jovem casal com dois filhos pequenos, discutem diária e ruidosamente. Mia é contratada para ministrar uma oficina de poesia — na qual se matriculam sete pré-adolescentes com alguma dificuldade de se relacionar entre si. É tudo muito simples: um cenário provinciano, personagens secundários convencionais, dramas paralelos bastante óbvios. Colocar um olhar feminista, mordaz e humano nesse contexto é um tanto difícil. Siri consegue, é claro. E é esse o seu mérito.

Notem que a autora inclui, de forma deliberada, mulheres de diversas idades. A mais jovem é Flora, uma voluntariosa garotinha de três anos que se recusa a abandonar uma peruca que a deixa idêntica, segundo Mia, a “Harpo Marx eletrocutado”. Há as sete alunas da oficina de poesia, que, para resolver disputas de poder, apelam para os conhecidos joguinhos entre as mulheres (o que leva a narradora a questionar a impossibilidade de as meninas, a exemplo dos meninos, resolverem seus conflitos com uma luta física). Há Lola, a jovem vizinha e mãe de Flora, que sofre com um marido agressivo. Há a própria Mia, uma sensível mulher de meia-idade que acaba de sofrer um duro golpe. Há sua mãe e as amigas de sua mãe, que se aproximam do fim da vida. As sutilezas e as particularidades de cada uma das etapas estão todas ali.

A vida interior dos narradores de Siri é bem conhecida — em O verão sem homens, ganham mais força as sessões de psicanálise e as explicações acadêmicas para os mais diversos assuntos. “Tosquiada a intimidade, e vistos de uma distância considerável, somos todos personagens cômicos, bufões farsescos e errantes através das nossas vidas, armando belas confusões no caminho, mas, quando se chega mais perto, o ridículo rapidamente se revela ora sórdido, ora trágico, ora meramente triste”, diz Mia. Esse melancólico espetáculo humano, sempre presente na literatura de Siri Hustvedt, é tanto mais incômodo em O verão sem homens quanto, sob determinadas perspectivas, mais leve.

Estruturalmente, O verão sem homens não é dividido em capítulos. A narrativa é construída a partir de trechos soltos de pensamentos e relatos de Mia, de e-mails esparsos, de poemas e até de uns poucos desenhos. Como forma de abordar e satirizar as supostas diferenças entre masculino e feminino, Siri inclui inúmeras alusões à biologia (não se esqueçam que B.I. é neurocientista) e à filosofia.

A literatura muito particular da autora se traduz nessa passagem: “E acabou [o clube do livro] antes que eu pudesse dizer que não existe nenhum assunto humano inabarcável pela literatura. Não é preciso fazer nenhuma imersão na história da filosofia para que eu insista que não existe NENHUMA REGRA na arte, e que não existe nenhum fundamento capaz de dar embasamento aos Palermas e Bufões para os quais existem regras e leis e territórios proibidos, e portanto não existe hierarquia que declare que ‘vasto’ seja superior a ‘estreito’ ou que ‘masculino’ seja preferível a ‘feminino’. A não ser por preconceito, não existe nenhum sentimento nas artes que seja banido da expressão, nem história que não possa ser contada. O encanto está na sensação e em contá-la, e isso já é o bastante.” Os romances de Siri Hustvedt se encaixam perfeitamente nessa fala veemente de Mia. Todos são um arranjo meio caótico (se você não se dispuser a tentar organizá-lo) em que há lugar para tudo.

Por falar em literatura, a narradora de O verão sem homens ironiza as pesquisas que apontam certas competências intrínsecas a um sexo. O gênero feminino apresentaria “‘habilidades verbais’ mais desenvolvidas”, o que explica, segundo ela, “por que as mulheres dominaram as artes literárias durante tanto tempo, sem nenhum homem à vista”. Continua dizendo “que, no tocante aos titãs da literatura contemporânea, tanto na academia como no campo popular, o número de mulheres entre eles é, simplesmente, espantoso”. (Vale a leitura: Profissões para mulheres e outros artigos feministas, voluminho de ensaios de Virginia Woolf lançado pela L&PM Pocket. A tradução é da ótima Denise Bottmann.)

É esse feminismo sagaz e provocativo que a narradora de O verão sem homens atira continuamente para o leitor. Mia é combativa, mas não lê Simone de Beauvoir (à sombra de Jean-Paul Sartre?), Julia Kristeva (à sombra de Philippe Sollers?) ou Judith Butler. Prefere Kierkegaard e Plutarco. Cita uma profusão de poetas.

O verão sem homens não será uma descoberta fantástica para todos os leitores. É preciso gostar de suas incursões pelas diversas áreas do conhecimento humano, é preciso entender que ele não traz respostas prontas — pelo contrário: Siri quer desafiar —, e é preciso tolerar uma dose de romance que alguns acharão deslocada. O livro é reconhecida e orgulhosamente sentimental em alguns aspectos. Algo que, vindo de Siri Hustvedt, não parece despropositado ou inferior. Pelo contrário.