Tiros!

Homens gritando com os rostos cobertos por lama. Alguns com os braços sangrando, enquanto outros choram e uns poucos se entregam.

Isso é, basicamente, a minha visão de uma guerra ao se retirar toda a questão política de quem está ou não nas trincheiras. E poderia seguir por diversos clichês antiguerra para apontar os clichês das guerras: como começam, como se desenrolam, como terminam – ou como perdem a atenção – e como deixam traumas para combatentes e para quem estava no meio do fogo cruzado sem ter para onde ir. Por causa dessa visão simplista sobre guerras e conflitos armados, não me interessa, a princípio, ler livros e ver filmes de memórias, mesmo que ficcionais, em torno desses assuntos.

Esses temas são bons porque alimentam a literatura com diversos pontos de vistas de uma mesma história, sem contar os inúmeros universos paralelos surgidos com perguntas como “e se o outro lado tivesse ganho?”, “e se seres super poderosos estivessem do lado A?”, e etc. Mais cedo, com mais ou menos impacto, as guerras, as Mundiais, do Vietnã, Civil Espanhola, etc, transformam-se em ficção. E com toda uma cobertura midiática e online, não tardaria para a invasão dos EUA ao Iraque e ao Afeganistão virar filme ou livro respeitando todos os clichês possíveis de jovens perdidos que não sabiam o que era uma guerra. Uns jovens soldados comprados pela propaganda de que estão acabando com o mal, outros fantasiando que tudo é igual aos filmes que viam quando pequenos e outros ali por falta de opção. São muitas histórias parecidas, quase como uma fórmula esquemática para contar várias histórias.

Pássaros Amarelos, de Kevin Powers, chegou sem muito burburinho aqui no Brasil – apesar de ter ganho o prêmio PEN/Hemingway e ser classificado por Tom Wolfe como o Nada de novo no front da Guerra no Oriente Médio.

O livro tem todos os itens que citei anteriormente. Somos apresentados a John Bartle, jovem de 20 e poucos anos da Virgínia enviado ao Iraque para combater o mal, e todos os lugares-comuns necessários para se contar uma história sobre guerra: as noites sem dormir, as vigílias, o cheiro de morte, o arrependimento, as promessas, os credos, a quase loucura de estar certo de que não haverá volta para casa.

A história de John Bartle não é somente sobre a invasão dos EUA ao Iraque. É sobre não saber o que se faz em uma guerra. Matar? Sim, só não se sabe se por prazer, se por necessidade, ou uma mistura dos dois. Sobre fazer promessas que não se pode cumprir e não saber por que não as cumpriu, por que as fez. Mas, principalmente, é sobre se perder e perder uma identidade. Você pode ser chamado pelo seu sobrenome, mas é apenas mais um número e tem uma ficha toda para sua baixa: tiro na cabeça, hemorragia, em combate, aprisionado.

Contudo, se os clichês existem e são usados, é porque funcionam se bem aplicados – até mal utilizados em certos casos – e o que a princípio parece uma falha enorme no livro de Powers se torna seu grande trunfo após os cinco primeiros capítulos. O autor, que serviu na guerra, intercala cenários e tempos para contar um caso específico na vida de seu protagonista. Powers apela para os traumas de um ex-combatente, mas evita bater nesta mesma tecla por muito tempo e dosa de pouco em pouco sobre o que realmente se trata o livro.

Em dados momentos, a leitura escorrega em floreios excessivos que tentam criar uma aura poética ou um cenário mais belo do que realmente necessário. É também a partir dessa supersaturação que compreendemos John Bartle do passado e do presente ao chegarmos ao ponto de virada de Pássaros Amarelos. Mesmo com um clímax descritivo extremamente visceral, não há grandes surpresas no livro de Powers, que tem méritos graças à estrutura narrativa e não à história que conta.

É muito cedo para comparar Pássaros Amarelos com Nada de novo no front e prematuro dizer que seja uma obra-prima sobre os conflitos tão atuais que ainda não se encerraram. E aqui eu vou contra a opinião de Tom Wolfe:  há qualidade narrativa no livro de Kevin Powers, mas é necessário paciência, cautela e muito mais material, ficcional ou não, sobre a Guerra do Iraque para conseguirmos classificar seu livro como realmente relevante.