“A arte de perder não é nenhum mistério; 

Tantas coisas contém em si o acidente

De perdê-las, que perder não é nada sério.

 

Um filme para preencher um poema – a isso se propõe a obra de Bruno Barreto. Elizabeth Bishop, a poeta americana vencedora do Pulitzer e do National Book Award, começa esse filme num banco do Central Park ao lado do amigo Cal, o escritor Robert Lowell, lendo os dois fracos versos que até então havia conseguido escrever daquele que talvez seja seu poema mais famoso, Uma Arte 1.

Àquela altura a dificuldade de Elizabeth em desenvolver o poema não estava na técnica, mas no sentimento. Anglo-saxã, mesmo tendo sofrido dramas intensos como a perda, ainda na infância, da mãe e do pai e mergulhar sua melancolia em infinitos copos de gim com tônica, Bishop ainda não havia experimentado a sensibilização dos trópicos, os sentimentos que suam a pele com o sol de uma cidade como o Rio de Janeiro. Diante das críticas de Cal às falhas de seu poema, Elizabeth anuncia que pretende viajar, ao que o amigo, irônico, responde: Ah, a cura geográfica!

 

Perca um pouquinho a cada dia. Aceite, austero, 

A chave perdida, a hora gasta bestamente.

A arte de perder não é nenhum mistério.

 

 

Em certa medida, os quinze anos que Bishop passou no Brasil, época em que viveu com a arquiteta autodidata Lota de Macedo Soares, foi sim uma cura para seu espírito conturbado. No paraíso da casa de Samambaia, construída por Lota com o arquiteto Sergio Bernandes na região de Petrópolis, Bishop produziu suas obras mais importantes, entre elas North & South, pela qual ganhou o prêmio Pulitzer de 1956.

O filme atualmente em cartaz no país, com direção de Bruno Barreto e roteiro de Matthew Chapman e Julie Sayres (primeiro tratamento de Carolina Kotscho), se propõe, como disse o diretor em entrevista ao Posfácio, a ser “uma grande história de de amor” – dando destaque justamente em “como a fraca torna-se forte (Bishop) e como a forte torna-se fraca (Lota)”. E justamente aí reside seu mérito, mas também sua maior falha.

Flores Raras 1
Elizabeth Bishop (1911-1976) é interpretada pela atriz australiana Miranda Otto.

A inspiração para a obra cinematográfica está em alguns livros que contam a história dessas duas importantes mulheres, como A Arte de Perder (LeYa, 2011), de Michael Sledge, Um Porto Para Elizabeth Bishop (Terceiro Nome, 2001), de Marta Góes, Invenções de Si em Histórias de Amor (Apicuri, 2008), de Nadia Nogueira, As Cartas de Elizabeth Bishop (Companhia das Letras, 1995), com tradução de Paulo Henriques Britto e, sobretudo, Flores Raras e Banalíssimas (Rocco, 2011), de Carmen L. Oliveira.

Mesmo com estilos e enfoques diferentes – enquanto A Arte de Perder tem Bishop como protagonista e faz de seu período no Brasil apenas uma fase de sua vida, embora a mais importante, Flores Raras e Banalíssimas destaca a impulsiva Lota e é narrado em pequenos excertos, como rememorações precárias e não lineares –, todos os trabalhos se propõem a tornar mais tangíveis essas mulheres, esmiuçando suas vidas pessoais e repassando seus grandes feitos profissionais.

 

Depois perca mais rápido, com mais critério:

Lugares, nomes, a escala subsequente

Da viagem não feita. Nada disso é sério.

 

No filme de Barreto o protagonismo pende à Bishop (interpretada por Miranda Otto), mas a atuação de Glória Pires como Lota, tão fora dos padrões novelísticos da Globo com o qual o público está acostumado, faz dela a grande surpresa. Ambas as atrizes – assim como Tracy Middendorf, como a coadjuvante Mary – fazem trocas convincentes, inclusive nas cenas de sexo, dando espaço uma à outra e preservando as nuances das personagens.

A bibliografia disponível possibilita a construção de imagens muito tangíveis dessas duas mulheres: Lota, a Dona Lota com seus infinitos cigarros, é a mulher que explode uma rocha para construir um escritório para a amada, que compra um bebê para a ex-mulher (Mary) e que enfrenta sem medo qualquer um que interfira em suas decisões sobre o Parque do Flamengo; Bishop, mais recatada, quase estoica, revela sua delicadeza em seus poemas dedicados à natureza e seus demônios em corriqueiros episódios de bebedeira.

 

Perdi o relógio de mamãe. Ah! E nem quero

Lembrar a perda de três casas excelentes.

A arte de perder não é nenhum mistério.

 

Se as protagonistas foram bem construídas e moldadas em belas interpretações, há, no entanto, falhas que incomodam, como a péssima interpretação de Marcello Airoldi a Carlos Lacerda e, sobretudo, faltas que causam pesar aos que conhecem a história mais a fundo. Dando preferência a história de amor, a trama política e histórica que envolve essas biografias foi obliterada: Lota era grande amiga de Lacerda, o governador da Guanabara (1960-65) – que, de acordo com os livros, nunca se deu bem com Bishop, embora o filme mostre o contrário – e, movida pelo “medo do comunismo”, participou ativamente das articulações ao Golpe Militar de 1964, tendo, inclusive, dado abrigo ao amigo numa noite de perseguição, episódio bem narrado no livro de Oliveira.

Existe também a falta da verdadeira casa de Samambaia, construída por Lota; porém, é uma falta compreensível, já que a atual dona da residência, infelizmente, não permite visitas, muito menos filmagens. A alternativa encontrada pelo filme – usou-se uma casa projetada por Oscar Niemeyer com o mesmo “espírito” modernista-tropical – é satisfatória e muito impactante. O que não é compreensível, revelando apenas um roteiro com dificuldades de abraçar a complexidade da trama que pretende representar, são as ausências do paisagista Burle Marx e do arquiteto Affonso Reidy, parceiros importantes de Lota na empreitada da construção do Parque do Flamengo e fundamentais a alguns desdobramentos da vida da arquiteta.

 

Perdi duas cidades lindas. E um império

Que era meu, dois rios, e mais um continente.

Tenho saudade deles. Mas não é nada sério.

 

Contudo, a belíssima fotografia, o figurino bem arranjado e os momentos de muita inspiração – como na cena em que Bishop declama no ouvido de Lota o poema que fez para ela e, na sequência, diz “eu te amo”, enquanto a amada se entrega a um pesado sono 2 (imagem que ilustra essa crítica) –, dão a Barreto o mérito de não deixar que as interpretações sejam o único destaque da obra. Outro destaque é o preciosismo nos detalhes, como nas luvas furadas nos dedos que Lota usava para dirigir e os quadros de sua pintora predileta, a paulista Maria Leontina, enfeitando o cenário de sua casa.

Maria Carlota Costellat de Marcedo Soares (1910-1967), a Dona Lota, em bela atuação (em inglês) de Glória Pires
Maria Carlota Costellat de Marcedo Soares (1910-1967), a Dona Lota, em bela atuação (em inglês) de Glória Pires

Há muito da beleza e da profundidade da vida de Lota e Bishop que o filme consegue captar tão bem quanto os livros sobre elas. O adjetivo “rara” se une às flores do título para qualificar essas duas mulheres grandiosas, plurais e que merecem admiração – sobretudo Lota, menos reverenciada que Bishop, mas tão importante quanto, autora de uma das obras paisagísticas mais belas do mundo moderno, um toque de delicadeza e bom gosto na área mais privilegiada da geografia do Rio de Janeiro.

No fim do filme voltamos a Bishop no Central Park, novamente ao lado de Cal, mas agora com Uma Arte já completo, preenchido pela vida. Suas feições mudaram (grande mérito de Miranda Otto nessas cenas): da fragilidade à melancolia estável, à realidade marcada na pele dos que sobreviveram ao desafio da vida; a fraca tornou-se forte. O público que, depois de apresentado à história por meio dessa bela obra, se interessar em mergulhar mais profundamente nessas biografias, certamente carregará para sempre uma nostalgia inexplicável e carinhosa por essas duas flores raras 3.

 

– Mesmo perder você (a voz, o ar etéreo

que eu amo) não muda nada. Pois é evidente 

Que a arte de perder não chega a ser mistério,

Por muito que pareça (Escreve!) muito sério”

 

http://www.youtube.com/watch?v=dJIQWEKDT74

 

  1. A versão enxertada ao longo dessa crítica foi retirada do livro Poemas Escolhidos de Elizabeth Bishop, da Companhia das Letras, com tradução de Paulo Henriques Britto, que em breve terá resenha aqui no Posfacio
  2. Na entrevista com Bruno Barreto, quando disse que essa foi minha cena predileta, ele reagiu entusiasmado, revelando também tratar-se da cena de que mais gostou
  3. Dedicado a Aline Guimarães e Nicole Prestes, as flores raras que me apresentaram Dona Lota e Elizabeth Bishop