Orhan Pamuk talvez seja um caso raro entre escritores: ganhador do Nobel em 2006, é também o autor mais vendido em seu país de origem, a Turquia. Afeito a contradições, ele vive nos Estados Unidos desde 2003, mas segue escrevendo em turco; embora popular, enfrentou um processo por declarações feitas sobre o genocídio armênio e o massacre de curdos e teve seus livros queimados em praça pública. O único nobel do país é ao mesmo tempo um ídolo e uma figura indesejável.
Faz sentido para um lugar que é em si contraditório: metade Europa, metade Ásia; islâmica, mas secular; onde o topless é permitido e praticado por turistas europeias, mas boa parte das mulheres nativas anda de cabeça coberta. Localizada bem na passagem entre o oriente e o ocidente, a Turquia parece não saber para onde olhar e Orhan Pamuk olha para isso.
O Museu da Inocência é seu 11º romance. Lançado em 2009, o livro é na verdade parte de um projeto maior: enquanto o escrevia, Pamuk montava um Museu da Inocência da vida real em Istambul, que foi aberto ao público em 2012, e que eu pretendo visitar dentro de um mês. Ao criar simultaneamente a ficção e a realidade, o escritor nublou as fronteiras entre elas e materializou o que é, em parte, o tema do romance.
O Museu da Inocência é um museu, e um livro, sobre Füsum, uma jovem turca por quem o narrador foi perdidamente apaixonado. Mas é também sobre o amor, a obsessão e as relações pessoais em um tempo em que os códigos mudavam e ninguém sabia bem como se adequar a eles. Narrada na voz de Kemal, um homem de 30 anos, empresário e filho de uma das famílias mais ricas de Istambul, a história cobre os anos entre 1975 e 1984 e radiografa de forma sutil os contrastes entre a classe alta e o povo turco nesse período de transformações.
Em 1975, Kemal está noivo de Sibel, a filha de um ex-diplomata. Ele estudou em Harvard, ela na Sorbonne; eles frequentam festas em que se consomem bebidas alcóolicas importadas, comem em restaurantes de nomes europeus e chegam mesmo a fazer sexo antes do casamento, mas apenas porque SIbel tem certeza que Kemal se casará com ela. No entanto, o protagonista se apaixona por uma prima pobre, Füsum, e enlouquece a ponto de romper o noivado e passar os próximos oito anos esperando por ela.
O drama de Kemal só ocupa 560 páginas porque trata de um tempo e lugar em que os relacionamentos amorosos eram regidos por normas rígidas, ainda que veladas. Se namoros começassem e terminassem como estamos acostumados a ver, ele teria rompido rapidamente com Sibel, iniciado um relacionamento com Füsum, talvez se casado com ela, talvez não. Mas no tempo e lugar que Pamuk retrata, após perder a virgindade irresponsavelmente para Kemal, só resta à moça casar-se com o primeiro que aparece, e para deixá-lo é preciso um motivo convincente.
Pamuk divide seu livro em duas classes, dois bairros da cidade, duas mulheres e duas partes. A primeira se passa quase toda entre a classe alta de Nisantasi, antes que Kemal rompa seu relacionamento, e é composta principalmente de festas, reuniões, jantares, a vida agitada de jovens proeminentes da sociedade. Os códigos morais são mais frouxos e o tom é fluido, envolvente e gostoso de ler. A segunda parte acompanha o crescente isolamento do protagonista enquanto ele afunda em sua obsessão e se passa quase toda em um mesmo apartamento de Çukurcuma. A narrativa se torna tão imóvel quanto a espera do personagem, e o leitor é mergulhado na lentidão e no tédio retratados, tudo se arrasta e, assim como o amante frustrado, parece que contemplamos páginas sem fim de uma repetição angustiante.
Por fim, há uma espécie de epílogo, quando Kemal, finalmente liberto, passa a montar seu museu. O que ele busca documentar é mais do que seu amor, é todo o mundo que tornou possível uma história como essa, o mundo dos filmes melodramáticos de finais moralistas, moços que frequentam bordéis e um código de conduta tão sutil quanto hipócrita.
Kemal não é apenas um narrador pouco confiável, ele é também extremamente egocêntrico e cada vez mais vive na bolha de sua obsessão. Pamuk é excelente ao comentar superficialmente, quase como algo que acontece no canto do olho do narrador, as sucessivas revoltas e mudanças políticas pelas quais o país passava. A Turquia vai se modernizando, ainda que de forma atrapalhada, o tecido das relações mostradas ali vai se esgarçando e a história vai necessariamente chegando ao fim. O fim é explosivo e é o único momento em que vemos Füsum como um personagem com vida, algo além de um objeto de adoração.
No fim de seu livro, o escritor revela a distância entre o que vê Kemal e o que era a realidade e termina com uma manobra metalinguística: Orhan Pamuk aparece, como se Kemal o tivesse procurado para contar a história de seu museu. São camadas de ilusões que se acumulam, um livro sobre um livro baseado em um museu que existe de verdade, mas apenas enquanto materialização do livro.
É esse tipo de jogo que torna O Museu da Inocência um livro fascinante, toda a sutileza e o cuidado da construção que só no final conseguimos perceber o quanto é meticulosa. Meticuloso parece uma palavra perfeita para descrever a escrita de Pamuk, que é precisa e poética na medida para expressar o olhar agudo que ele faz da sua sociedade de origem.
Esse livro é mesmo fantástico, assim como toda a obra de Pamuk.
Acabo de ler o Museu da Inocência e fui para a internet confusa nas diversas camadas de ilusão e me perguntando se o Museu existia de verdade já que visitarei Istambul em breve. Confesso que abandonei minha leitura por meses tomada pelo marasmo dos anos de jantares no apartamento de Çukurcuma. Acho que devido a viagem próxima resolvi retomar o livro e gostei de tê-lo feito. Gostaria de saber se visitou mesmo o museu e quais suas impressões?