Acredito que boa parte dos leitores já parou em algum momento para pensar um pouco sobre o ato de ler. Talvez não tenham ido tão longe – ficando restritos a imaginar os porquês que o motivaram a fazê-lo, não raro com algum ressentimento proveniente de obrigação –, talvez tenham procurado entender o que os faz gostar de ler – ou não gostar, dependendo do caso –, ou, ainda, tenham se estendido um pouco mais nesse sentido, forçando a fímbria mais superficial do ato e investigando os aspectos filosóficos e ontológicos que existem por detrás da construção e interpretação de narrativas. Umberto Eco certamente pertence a esse último grupo, embora não tenha se furtado às outras abordagens também.

O livro Seis passeios pelos bosques da ficção é o resultado de questionamentos como esses. A obra reúne as seis conferências que Eco proferiu em 1993 na Universidade de Harvard, nas quais resolveu abordar os mecanismos que sustentam uma obra de ficção e, mais especificamente, sua leitura. É precisamente nesse último elemento de investigação que ele aprofunda seus questionamentos e consegue aguçar de tal maneira sua interpretação que se tornam necessárias releituras para compreender todo o potencial de seus questionamentos e ponderações – embora, é necessário ressaltar, o caráter didático da argumentação de Eco seja admirável.

A imagem que serve de título aos livros – e como metáfora constante das ponderações de Eco – é proveniente de um conto de Borges “O jardim das veredas que se bifurcam”, presente no extraordinário Ficções. A propriedade daquele jardim (bosque) borgeano – o de mudar sua estrutura de acordo com as escolhas daquele que ousava adentrá-lo e percorrê-lo – serve de analogia para a prática da leitura, a qual permite várias interpretações, mudando sua disposição e funções de acordo com o livro, a narrativa e o leitor que a leva a cabo.

Embora aqueles curiosos de ocasião aos quais aludi no início da resenha tenham chegado a algumas conclusões fundamentais acerca da leitura, é muito provável que boa parte deles não tenha sido capaz de reconstituir os mecanismos mais básicos da leitura e da interpretação de uma obra de ficção, em parte porque eles são tão automáticos e instintivos que parecem ser naturais ao invés de parte de um longo processo de educação leitora, passando, assim, despercebidos. Umberto Eco se volta a esses processos basilares da leitura, sendo capaz de esmiuçá-los e explicá-los com grande erudição e clareza.

Um exemplo disso encontra-se na sua discussão sobre o leitor empírico e o leitor-modelo (Ensaio 1 – Entrando no bosque). Segundo Eco, ao escrever um livro, o autor busca transformar um leitor empírico em um leitor-modelo, isto é, o autor busca converter um leitor qualquer – munido de todas as peculiaridades possíveis a um ser humano qualquer – em um leitor específico – munido, além de suas peculiaridades idiossincráticas, das faculdades necessárias para compreender aquilo que a obra tem a dizer. Simplificando desse modo parece que a obra está a limitar o sujeito em suas particularidades, mas é justamente o oposto, pois a obra busca aguçar determinadas qualidades perceptivas do leitor e modelar seu olhar e sua capacidade interpretativa para que este perceba aquilo que ela quer lhe transmitir.

Baseando-se em grande medida na obra Sylvie, de Gérard de Nerval, Eco busca percorrer seus meandros nos levando pela mão e apresentando os diferentes artifícios da construção narrativa e as possíveis conclusões de leitura provenientes deles. O uso do tempo, a construção da voz narrativa, as descrições insinuantes, o diálogo entre o universo literário e o não-literário e assim por diante. Cada uma das estratégias de Nerval é dissecada pelo autor italiano com bom humor e, como se trata de uma obra baseada em conferências, sintetizada de forma articulada e lapidar.

Conquanto cada um dos ensaios traga à baila uma discussão muito interessante sobre o ato da leitura e o papel dos livros e dos leitores nesse sentido, creio que o quarto ensaio (Bosques possíveis) e o sexto ensaio (Protocolos ficcionais) são, ao lado do primeiro, o ponto alto de toda a coletânea. Se o primeiro ensaio (supramencionado) investiga o processo de conversão de leitor intentado por toda a obra literária, o quarto ensaio busca investigar a maneira como a ficção funciona enquanto um acordo entre o escritor e o leitor. Logo nos primeiros parágrafos o problema a ser discutido é enunciado:

“A norma básica para se lidar com uma obra de ficção é a seguinte: o leitor precisa aceitar tacitamente um acordo ficcional, que Coleridge chamou de ‘suspensão da descrença’. O leitor tem de saber que o que se está sendo narrado é uma história imaginária, mas nem por isso deve pensar que o escritor está contando mentiras. De acordo com John Searle, o autor simplesmente finge dizer a verdade. Aceitamos o acordo ficcional e fingimos que o que é narrado de fato aconteceu.” (p. 81)

Essa enunciação exprime a maneira como Eco busca compreender o funcionamento da ficção e como, a partir dele, o autor busca compreender a maneira mais básica através da qual a leitura é feita e funciona. A leitura enquanto “máquina preguiçosa”, como ele expõe, é parte importante de sua concepção acerca da ficção, pois expressa como o leitor tem participação determinante numa obra literária. A ideia do acordo, aliás, serve muito bem ao propósito de demonstrar como ambas as partes – autor e leitor – dialogam na construção da leitura.

Uma das coisas que faz de Seis passeios pelos bosques da ficção um ótimo livro é a característica de Eco em encontrar pontos nevrálgicos de discussão, mas, ao mesmo tempo, não subestimar constatações mais básicas. Basta colocarmos frente à frente a discussão sobre leitor empírico/leitor-modelo e a discussão sobre o tempo na narrativa para nos apercebermos disso. A primeira discussão é complexa, amparada por diversos termos específicos e, além disso, demanda um fôlego especial para ser destrinchada por se tratarem de ideias intrincadas. Já a segunda apresenta um texto muito mais acessível, costurado por uma série de exemplos e uma problemática que demanda menos abstração analítica do leitor – o que está longe de fazê-la simplista.

Outro exemplo da excelência do livro em questão é a maneira como Eco conduz sua argumentação. A capacidade que tem de juntar elementos dos mais discrepantes como exemplos de uma discussão é assombrosa: vai de filmes pornográficos a Dumas, de romances policiais a noticiários de guerra, de Poe a Esopo. Isso, por si só, já é motivo para o admirarmos, pois isso emblematiza a envergadura que alcançam suas ponderações. Porém, essa profusão de exemplos encontra-se urdida por uma capacidade igualmente assombrosa de perceber as nuances mais “óbvios” da construção ficcional e explicá-los com clareza. Vejamos, pois, tal: para exemplificar a ligação intrínseca da ficção com a realidade, Eco escreve que um personagem, ao pedir a seu cocheiro para que o apanhasse a um determinado horário e em um determinado lugar, não pede que haja um cavalo atrelado à carruagem, e que o leitor não se surpreende diante desse silêncio. Ora, para que essa não-surpresa aconteça, é preciso que o leitor, ao ler a obra de ficção em questão, se baseie em sua própria experiência de mundo – isto é, em sua realidade vivida –, sabendo, por conseguinte, que está implícito no pedido do personagem que haja um cavalo a puxar a carruagem, visto não haver carruagens que se movam sem cavalos.

Embora o livro de Eco peça uma leitura atenciosa, creio que ele não esteja distante daqueles leitores que não costumam se perguntar sobre os porquês da leitura e da ficção. O caráter didático da argumentação de Eco e a profusão de exemplos que ele apresenta fazem de Seis passeios pelos bosques da ficção um livro interessante, inteligente e esclarecedor, de tal modo que escarafunchá-lo seja fazer das leituras posteriores um exercício qualitativamente diferente e potencialmente mais saboroso.

A título de informação, a relação dos ensaios que compõem o livro:

1 – Entrando no bosque
2 – Os bosques de Loisy
3 – Divagando pelo bosque
4 – Bosques possíveis
5 – O estranho caso da rue Servandoni
6 – Protocos ficcionais