O Som ao Redor foi escolhido para representar o Brasil na disputa pelo Oscar. Como muitos, considero um dos grandes filmes brasileiros dos últimos anos: é ousado e atual; possui montagem invejável e desenho de som irrepreensível; apresenta boas atuações, direção grandiosa e, finalmente, uma tensão crescente, possível apenas com a soma de todos os ingredientes citados anteriormente. Como toda unanimidade – que não é unânime –, conheci diversas pessoas que chamaram o filme de masturbação cult, de filme alternativo de frequentadores da Augusta e de pretensos-cineastas que dirigem curtas-metragens metalinguísticos.
Indo no caminho inverso dos últimos anos, em que cinebiografias de ícones nacionais eram favoritos, a escolha do filme de Kléber Mendonça Filho me deixou extremamente feliz e satisfeito. Desbancou, por exemplo, a esperta jogada de hype do piegas Colegas. Mesmo com a plena consciência de que é um filme arrojado em demasia para a estatueta de Filme Estrangeiro (lembrando que o fraco Haneke ganhou), torço para que ele fique entre os cinco candidatos. A carreira internacional de O Som ao Redor estava consolidada bem antes da escolha – o Oscar não é o prêmio que vai coroar tampouco confirmar isso, mas seria a chave de ouro que encerraria o jejum brasileiro na academia dos velhinhos judeus.
Teceria diversos comentários sobre a película – apesar de tê-la visto já faz alguns meses –, mas me cansaria e deletaria linha após linha como faço com grande parte dos meus textos sobre cinema nos últimos tempos.
Então por que trouxe o assunto à tona?
Logo após o anúncio, declarei meu júbilo por entre as redes sociais. Uma amiga disse-me que o filme era ruim. Meu amigo pessoal, e pai de grande parte da população escrevente, o Houaiss, explica-me: adjetivo de dois gêneros. 1. destituído de préstimo; sem valor; inútil; 2. cujo desempenho é; 3. que não faz bem, que prejudica; nocivo, pernicioso. Fiquei em silêncio após a confissão dela, falei que o filme era um dos melhores vistos nos últimos anos por mim e dei o assunto como encerrado.
O emprego desse adjetivo foi um grande problema anos atrás, lá pelos idos de 2004, quando eu estava no segundo semestre da faculdade. O meu erro foi empregá-lo para falar que o filme Olga – de Jaime Monjardim – não me agradara. A discussão tomou um rumo fora de controle, eu errei e meu interlocutor deu o xeque-mate: “Não tenho culpa que você tem mau gosto”. Aquilo foi um soco no meu estômago – eu realmente levava o cinema para o lado pessoal – e quase me descontrolei, num acesso de cólera, tamanha a ofensa. Não chegamos a um ponto final aquele dia e, creio eu, nunca mais conversamos normalmente.
Isso foi um fantasma nos anos subsequentes da minha vida até aprender a contornar certos temas (se houvesse um termômetro seria fácil). Aprendi a enxergar quando uma discussão – saudável e construtiva – começa e onde se transforma em uma elevação de voz sobre quem está certo ou errado, do que é bom ou ruim, sem apresentar uma mínima análise. Quando uma conversa chega ao ponto em que a pessoa fala que determinado filme é ruim, preciso entender por A + B o que faz aquela película uma obra sem valor.
Agora, se a sentença “questão de gosto” (e outras variantes) é proferida após considerarem algo ruim, há um agravante. É preciso algo mais: não necessariamente receber uma aprovação, mas apresentar argumentos mais sólidos do que um simples “questão de opinião”. A boa discussão vem quando o emissor é claro em sua defesa e, quando no papel de receptor, consegue analisar o que a outra parte quer dizer. Sem isso, as discussões tornam-se, essencialmente, uma caça às falhas do discurso de outrem e uma tentativa cansativa de se provar certo e melhor do que os nossos opositores.
Há tempos considero críticos (profissionais) como corajosos, por não mandarem às favas quem não concorda com seus textos só por gosto pessoal, quem não sabe apontar as razões para discordar com tanta fúria. Tento ser ponderado e, algumas vezes, cortês. Creio ter calos formados pelas discussões que perdi. Não me vejam como um sujeito avesso às conversas sobre filmes e livros – afinal, por que diabos eu editaria um sítio como o Posfácio se o fosse? Aprecio as trocas culturais diárias e as caixas de comentários. No entanto, não sei se consigo mais diferenciar pessoas com opinião forte de comentaristas desconstrutivistas – isto é, os famigerados “do contra” de plantão.
Cléo deu 4 estrelas e meia para a coluna do Pips. Se ele fizer um comentário bonitinho sobre esse comentário, ela dará a metade da estrela que faltou.
Uma das colunas mais lúcidas que você escreveu nos últimos tempos. Aliás, como ando meio sem tempo para ler, mais atentamente, o Posfácio, para eu largar os estudos (sim, estudar para concurso consome a gente) é só quando o título do texto me prende imediatamente. Nesta semana, isso aconteceu, por duas vezes. Primeiro, com o texto do Tuca sobre “Como ser mulher” , da Caitlin Moran (que, para o bem ou para o mal, sempre figura na biblioteca das feministas. Sim, figura na minha, hahaha). Agora, com o seu texto bonito sobre ” O som ao redor”<3 .Tá, na verdade, "O som ao redor" foi só o fio inicial da coisa, que acabou caminhando por um assunto extremamente pertinente.
Não sou conhecida por ser uma pessoa muito paciente. Antes sou referenciada pela minha impulsividade e , por vezes, capacidade de ser extremamente agressiva durante as discussões. Não me orgulho disso (aliás, ler a sua coluna, depois dos últimos excessos que cometi, na última semana, em uma discussão, foi como estar em uma sessão psicoterápica. Sério, o seu relato me ajudou a elaborar uma imensidão de coisas. Obrigada, mesmo, por isso).
Mas assumo que me permito ficar irada quando ouço o tal "gosto não se discute" durante quaisquer debates. Sempre que estou em uma discussão sobre algum livro, por exemplo, e aparece alguém falando "nossa, eu adorei o livro. Não entendo o porquê de vocês não gostarem, mas gosto não se discute", eu sinto um ímpeto de responder: "EU NÃO GOSTO DE VOCÊ, MAS NÃO ME PERGUNTE O MOTIVO, PORQUE GOSTO NÃO SE DISCUTE".
Gosto se discute, se questiona, se muda, se reconsidera, enfim, colocar as coisas no campo do sagrado é ruim porque o sagrado não se questiona, e eu tenho sérias dúvidas sobre o gozo estético de algo que não se permite questionar. Mas, assim como você, não tenho dúvidas de que "O som ao redor" foi uma escolha brilhante para representar o Brasil na disputa pelo Oscar.
Cleo, obrigado pelos elogios e sinto falta enorme de seus comentários por aqui. Eu era impulsivo, principalmente na faculdade, por causa de discussões desse tipo e quando alguém citava o meu gosto ou o gosto dela para encerrar a conversa parecia que, na minha testa, estava escrito “ignorante, burro”.
Hoje em dia, eu consigo relevar o que as pessoas falam e me dá pena de quem fala sobre a questão de gosto. Como vc citou “se questiona, se muda, se reconsidera”, basta deixar de ser orgulhoso e lembrar o que Guimarães Rosa falou “mire, veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam, verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso que me alegra montão.”
E eu ainda quero acreditar que elas mudam, pra melhor ou para pior.
Ganhou a metade que faltava da última estrelinha. E nem foi (apenas) porque citou Guimarães Rosa. hahaha
Gostei do texto, cara. Essa incapacidade de dizer por A+B porque alguém considera algo bom ou não é algo que me dá nos nervos – assistimos a mesma coisa, logo, por que eu consigo dizer porque não gostei e você, não? Não sei se o que falta aos críticos volúveis é honestidade para admitir que não têm como julgar a obra – o que é normal, pra que omitir? – ou vocabulário para se expressar – mas até temos que lembrar que Laranjinha e Acerola conseguiram resumir as Guerras Napoleônicas dentro do seu léxico (prejuízo da forma? Beleza, mas não necessariamente da informação).
Excelente crônica Felippe. Essa mania do “Não gostei… porquê? Porque sim!” reduz as discussões a um nada que não leva a lugar algum. Argumentos são necessários sempre. No meu caso, não digo que não gostei de “O som ao redor”, mas achei o filme superestimado por vários críticos e amigos. E vi o filme bem antes do oba oba todo. Me incomodou muito a atuação de grande parte do elenco, a meu ver, amadora. A direção também não me encantou… o que senti durante a projeção foi que tinha uma câmera ali, por trás de todas as cenas. Não deu para entrar no filme. Mas vejo méritos no roteiro e na forma. Enfim, quanto a escolha para o Oscar não sei se foi merecida, mas vamos pelo menos sair do lugar comum… quem sabe não é este o caminho?!