Hilton Lacerda não é um nome iniciante no cinema nacional: ele trabalhou como roteirista em longas premiados como Baile Perfumado, Amarelo Manga e Baixio das Bestas e sua estreia na direção resultou no belo Cartola – Música Para os Olhos. Ainda assim, Tatuagem é um filme inesperado, pela qualidade, pela ousadia e pelo domínio da linguagem em um diretor que assume a ficção pela primeira vez.

O ganhador de Gramado conta o romance entre Fininho, soldado de 18 anos, e Clécio, diretor de um cabaré anarquista, em pleno 1978. Ao ouvir essa sinopse, boa parte dos espectadores tem certeza da história que os espera: um jovem inexperiente, iniciado na homossexualidade pelo artista/intelectual, um drama com a família, ou o quartel, a aceitação. Espera-se quase de imediato um drama de revelação da sexualidade e luta contra as instituições, mas Tatuagem está muito longe de qualquer previsibilidade.

Lacerda escapa do clichê e complica a equação sem nunca perder de vista a expectativa de seu público, manipulando-a com habilidade. A sexualidade de Fininho e seu grau de experiência vão se revelando aos poucos, definindo uma figura que de início parece ambígua, e tira disso muito de seu apelo: ele parece tão jovem, tão inocente e ao mesmo tempo há uma decisão em seus atos que não se encaixa no esperado.

O conflito também não vem do lado mais óbvio, nem na forma do melodrama que parecia anunciado. São os próprios atores que desconfiam do menino, se incomodam com um soldado em seu meio, julgam. Lacerda constrói a tensão de um lado para então, como se quisesse apontar as histórias prontas e os preconceitos na cabeça de seus espectadores, explodi-la do lado oposto. O soldado homofóbico se revela atraído por Fininho, o menino aparentemente inocente revela um caso com o sargento, mas os atores incomodam-se profundamente com um estranho entre eles.

Tudo é complexo e real em Tatuagem: a desconexão entre o discurso de amor livre de Clécio e seu ciúme, a extravagancia e a fragilidade de Paulete e, principalmente, o sexo. Acredito que nunca o sexo entre dois homens teve um retrato tão forte e amoroso ao mesmo tempo, o cineasta não faz qualquer concessão ao romance dos protagonistas e constrói cenas explícitas, mas veladas na medida certa, extremamente sensuais, belas e fortes.

A câmera de Lacerda é um voyeur discreto e silencioso não só no quarto do casal. O cineasta manteve o espírito do documentarista que espreita, espera, mantém uma câmera quieta e distanciada, deixando que a ação desenrole-se na sua frente enquanto permanece passiva. São muitos planos longos e abertos, tempos mortos de quem está sentado observando aquelas pessoas, esperando que algo de interessante aconteça.

Essa câmera observadora dá espaço para os atores e para a criação de uma atmosfera. Quando Fininho e Clécio se conhecem, não há closes, planos fechados em olhares ou sorrisos, apenas um olhar espectador que vê criar-se entre os dois personagens uma tensão sexual quase palpável, concreta. No entanto, se nesses momentos os atores entregam um trabalho excepcional, às vezes eles falham e tornam-se o grande ponto fraco do filme.

Não é em momentos-chaves, nesses a atuação é precisa e emocional, mas justamente nos tempos mortos, quietos, que fazem tanto pela direção de Lacerda. Os diálogos descompromissados soam artificiais, a conversa cotidiana não convence e em todos esses momentos os atores parecem desconfortáveis, sem saberem muito bem o que fazer com o texto dado. A exceção é Rodrigo Garcia, sua Paulete é o tempo todo honesta e afetada, completamente artificial da forma mais natural possível. Nesse filme, tão ocupado em fugir do óbvio, Paulete é a única personagem estereotipada e ainda assim completamente única.

Tatuagem é um daqueles filmes que ficam a um degrau de serem perfeitos, mas ainda assim são de uma força extraordinária. Há problemas, de atuação e diálogos, mas nada disso compromete a estreia de Lacerda, seu filme é extraordinário e um dos esforços mais singulares do cinema nacional, um diretor que consegue ao mesmo tempo se deixar influenciar e ironizar o Cinema Novo, aceitar o rótulo de “cinema nacional” e escapar a ele. Hilton Lacerda faz um cinema pouco preocupado com a tradição da cinematografia nacional e, por isso, a honra como poucos atualmente.