Meu pai já dizia: todo ponto de vista é visto de um ponto. Opiniões são interpretações, e quem conta uma história só pode contá-la da sua perspectiva, por mais bem intencionado que seja. Capitão Phillips, novo filme de Paul Greengrass, estrelado por Tom Hanks, é um filme americano e em nenhum momento deixa de sê-lo, por mais que tente vez ou outra se condoer com o drama de seus vilões.

O capitão mercante Richard Phillips (na imagem em destaque, ao lado de Tom Hanks) é o autor e protagonista dessa aventura sobre o sequestro do navio Maersk Alabama, sob seu comando, em 2009, por piratas somalis. A história de Phillips é marcante, pois num golpe de má sorte ele torna-se o único refém dos quatro sequestradores e passa cinco dias cativo em alto mar, encerrado numa pequena cápsula baleeira. O episódio mobilizou forças militares americanas e boa parte da Marinha que patrulhava a região, fazendo o presidente Barack Obama autorizar o uso da força-tática dos SEALs para evitar que o capitão saísse das águas internacionais e adentrasse em território somali.

Vendo em perspectiva e com alguma noção de política internacional, sabe-se que o drama da Somália é muito mais complexo do que se possa inferir da trama, e que os pecados das grandes potências exploradoras são bem maiores do que se gostaria de assumir.

Reportagem da revista Época 1, sob o título Na Mira dos Piratas, assinado por Rodrigo Turrer e Marcelo Bernardes, ilustra bem a degeneração interna do país desde 1991, incluindo uma guerra civil e a impossibilidade dos pescadores locais, sem a proteção de um governo coeso, competirem com cargueiros internacionais. Assim, a Somália, que contém a maior costa da África, tornou-se local de espoliação marítima estrangeira. A resposta foi a proliferação de grupos piratas, cobrando pedágios, roubando e sequestrando, que se multiplicaram por vinte (de 5 a 100 grupos) em pouco mais de vinte anos (dos 90 aos 2010), e são autores de histórias tão ou mais impressionantes que a de Phillips.

Sob direção de Greengrass – responsável pelos vigorosos filmes da trilogia Bourne, com Matt Damon, e antes disso, por Voo United 93 (2006), considerado por muitos o melhor filme sobre o 11 de setembro –, esse drama globalizado, cujos protagonistas são, na verdade, personagens de uma trama muito maior, inverte sua lógica e transforma-se na luta de um homem pela sobrevivência. Mas Greengrass é habilidoso, sabe muito bem operar sua handcam e sufocar os espectadores com seus takes tremidos, explorando sabiamente o reduzido espaço da cápsula marítima, assim fazendo de Capitão Phillips uma experiência de sensações a que o espectador se entrega facilmente, partilhando da agonia claustrofóbica do personagem de Tom Hanks.

Por falar no ator, Hanks é uma escolha muitíssimo acertada para o papel: desempenho majestoso em uma de suas melhores atuações – certamente a melhor dos últimos anos. Sendo um velho conhecido do público, é fácil simpatizar com seu drama, por mais que o roteiro econômico escolha revelar pouco de seu passado, não perdendo tempo com cenas anteriores ao episódio do sequestro ou com a construção de sua vida familiar.

Fazendo par com Hanks, o vilão Muse, vivido pelo local Barkhad Abdi, reforça a preferência do diretor por mesclar atores profissionais e amadores, tendo incluído nessa obra até mesmo pessoal da Marinha americana e a mesma equipe médica que atendeu o capitão real. A dupla de protagonistas, além de simbolizar a histórica cisão cultural de domínio e subjugo, troca os melhores dos poucos diálogos do roteiro, e Muse tem a profundidade necessária para se fazer um vilão vigoroso, apesar de seu porte risível e de seu inglês precário – é hilária e pontual a cena em que ele diz: “I love USA”.

Com uma produção caprichada, que tenta reforçar em todo momento a atmosfera realista da obra – por mais que isso custe, vez ou outra, feias granulações de imagem em cenas escuras –, tudo em Capitão Phillips é condizente com o drama real, incluindo a escolha acertada de não mostrar nenhuma imagem de arquivo do verdadeiro Phillips.

Se ao roteiro faltam diálogos, sobra engenhosidade, sobretudo no desenvolvimento do desfecho do sequestro. Se a Tom Hanks faltam falas, sobram expressões honestas, como no estado de choque em que seu personagem se encontra quando recebe os primeiros socorros, depois do resgate.

Ao espectador, um filme de ação de ponta, alto calibre e pedigree, com o selo Greengrass de qualidade. Já a mim, que quando mais novo achava a frase do meu pai apenas mais uma expressão engenhosa sem substância e de raciocínio circular, Capitão Phillips mostra que na boa e velha Hollywood ela tem sua aplicabilidade. Resta agora saber o que os somalis acharam da obra.

 

  1. Em 4 de novembro de 2013, edição n° 806