Gosto dessas resenhas longas-mas-cheias-de-subdivisões porque você pode ler um pouco e deixar para ler o resto depois (e se lembrar de onde parou), ou escolher só ler uma parte ou ler na ordem de tamanho dos parágrafos ou preferir ler todas as notas de rodapé antes de tudo para então decidir por onde começar ou, no caso, só ler a seção intitulada com a maneira de sua preferência para temperar alface.

Um mundo de decisões a serem feitas, pequeno gafanhoto. Como um imenso buffet de saladas.

Com uma dose generosa de azeite

Quando finalmente divulgaram a capa do primeiro romance solo de Vanessa Barbara, visitou-me a mesma sensação de quando Barba ensopada de sangue chegou às livrarias. Não sei como vocês se sentem a respeito disso, mas há algo de irreal em se deparar com um romance cujo primeiro capítulo fez o escritor entrar na polêmica edição de melhores jovens escritores brasileiros da Granta. É como se o autor estivesse só de brinks, como se ele não tivesse intenção alguma de terminar o livro e só quisesse zoar com a nossa cara, zombando da nossa curiosidade (ou melhor, necessidade de saber!) a respeito de como a história continuaria. 1

Quando a capa foi divulgada, não tinha volta: o romance existia mesmo. Era questão de tempo até conhecer melhor os personagens que encontrei pela primeira vez nas cinco páginas da autora na Granta. Teve amigo que lamentou que “faltava um azeite” naquele trecho; eu reclamei apenas que ele fosse tão curto. Teve amigo que não gostou mesmo do título; eu, sabendo que não havia alface alguma no excerto, justifiquei-o como parte da pira hortifrutigranjeira da criadora de uma publicação chamada A Hortaliça.

O jeito era… esperar.

Com azeite, sal, mostarda e mel

Num prato fundo, distribuí algumas folhas de alface e rúcula com fatias de tomate, cebola e morango. Joguei azeite e uma pitada de sal por cima e misturei bem. Depois, pinguei algumas gotas de mostarda e, em cima de cada uma delas, uma gota de mel. Novamente, misturei bem. Quando estava prestes a abocanhar a salada, chegou o carteiro. Em um dos envelopes, meu Noites de alface. Sim, me prometeram que eu receberia um exemplar antes das livrarias receberem caixas e caixas recheadas de verdinhas fresquinhas da gráfica. 2 Mas, ainda assim, fiquei surpreso com a promessa sendo cumprida.

Como os diversos malabarismos para ler durante o almoço não me são estranhos, comecei a leitura do romance ao som semicrocante da alface americana sendo triturada. Duas páginas e eu não estava mais na vila militar em que vivo, não mais num apartamento cujos vizinhos de prédio desconheço, mas em outra cidade, outra vila, numa casa amarela cuja vizinhança já começou a dar as caras. Oi, Nico. Olá, Iolanda. Teresa, você prendeu os cachorros?

O livro me acompanhou à academia e quase me fez desistir da musculação em favor da bicicleta ergométrica – só porque nela eu poderia me exercitar e ler ao mesmo tempo.

No outro dia, restavam apenas quatro páginas. O que são quatro páginas? São… um nada, é isso o que são quatro páginas! Eu até inventei de passear pela livraria no dia; deu para namorar um monte de livros com caras sedutoras – Fingidores, de Rodrigo Rosp, e Divórcio, do Ricardo Lísias, foram dois deles. Resumo da ópera: tirei meu exemplar de Noites de alface da mochila no meio da livraria – pois que o infame estabelecimento ainda não tinha encomendado o livro – e terminei a leitura ali mesmo.

Eu só queria que o livro durasse mais. 3

Com… açúcar?

Aos que ainda não entendem o título do romance – e sequer se dignaram a ler o título da resenha da gata da literatura para o mesmo – Ada, a senhorinha cuja morte é citada logo no primeiro parágrafo do livro, explica: chá de alface é “uma solução caseira, uma fórmula de sonífero ensinada por sua avó”. Ela o fazia para Otto, seu marido, que tinha umas crises brabas de insônia. Ele não gostava – mesmo com bastante açúcar! – e o experimento não surtia o efeito desejado. 4

 

Hipótese refutada. Abaixo a lactucina. A cobaia não aguenta mais ver alface.

 

Engraçado que não foram poucas as pessoas que me perguntaram se o livro tinha algo a ver com chá de alface e com o efeito soporífero da ingestão do dito-cujo. Estava tão acostumado a ouvir gente falando mal do título e a defendê-lo como uma idiossincrasia da autora que não me dei conta (sim, eu sou um literato de meia tigela) de que o título fazia referência a um elemento famoso na cultura popular brasileira – e que me era totalmente desconhecido.

Fico imaginando quantas pessoas não terão levado o romance para casa só pela promessa de relembrar as noites agitadas em que seus avós faziam chá de alface para ver se eles sossegavam o facho e dormiam de uma vez.

Com bolo de chocolate, sorvete e molhinho

Quando perguntaram à escritora em uma entrevista quais eram os seus livros favoritos, uma de suas respostas foi:

 

Gosto de romanções tipo Stendhal, Flaubert, Balzac, Dostoievsky, Tolstói, essas bobagens todas.

 

Sim, essa besteirada toda. Se você gosta mesmo de algo, não fica de reverência com aquilo. Trata como amigo, como aquela visita que pode ir, ela mesma, pegar um copo d’água na geladeira, pois que já é de casa. A moça é tão íntima de caras como o Herman Melville, que a epígrafe do livro nem parece ter sido retirada de Moby Dick, mas escrita exclusivamente para o romance epigrafado – a saber, “Raios que me partam, valeria a pena nascer neste mundo nem que fosse apenas para dormir.” Ela é bróder dos velhinhos todos. O Luis Fernando Veríssimo chamou-a de “exemplar”! 5 Em outras palavras, ela indica ser partidária do time dos que cultuam a frase que define minhas leituras em 2013: estou farto de livro chato. 6

Noites de alface é um livro despretensioso e gostosinho de ler. Chega a parecer, sei lá, pecado. Chega a assustar um pouco: depois que a gente se acostuma com um monte de escritores querendo reinventar a linguagem e buscar novos limites para sua experimentação estética, 7 dá aquele medo de que, do nada, a autora passe a utilizar um fluxo de consciência para, sei lá, expressar a confusão mental da viuvez recente de Otto. Gato escaldado tem medo de água fria.

Quem ainda escreve em terceira pessoa? Parece ingenuidade ou muito antiquado fazê-lo, mas, se o resultado é um livro bom assim, por que não? A terceira pessoa não morde, gente. O livro que me convenceu de que o Bernardo Carvalho se tornara um de meus autores favoritos, por exemplo, foi O filho da mãe, escrito justamente em terceira pessoa. 8

Quem ainda ousa utilizar adjetivos e advérbios como bem entende? Parece haver essa regra de que quanto mais seco melhor; “escrever é cortar”, a regra máxima de uma oficina literária. Nick Hornby fala com bastante propriedade sobre isso, em um texto da coletânea Frenesi Polissilábico no qual discorre sobre sua leitura de David Copperfield 9 – Dickens dando um claro exemplo de que mais é mais. Mais fruição para o leitor, inclusive. 10 Quando perguntei “Escrever é cortar?” à escritora Elvira Vigna, em passagem recente por Curitiba, ela admitiu que, ao ter um livro recusado pela editora, notou, enquanto o relia, que ele estava muito seco. Completou: “escrever é cortar, mas também é acrescentar, colocar um molhinho”. O texto acrescido do molhinho tornou-se o romance O que deu para fazer em matéria de história de amor.

Vanessa Barbara, sem o molhinho que conhecemos bem de suas colunas, crônicas e reportagens, talvez não fosse reconhecível. Ela escreve “polido”, “curioso”, “pra burro” e outras palavras e expressões favoritas, que incluem, claro, referências a hortaliças. O molhinho está todo lá. Aliás, talvez seja um bom momento para citar as respostas da autora a uma entrevista feita pelo Jornal Rascunho – e que se assemelham aos dois parágrafos de Hornby transcritos nas notas de rodapé:

 

Qual dúvida ou certeza guia seu trabalho?
A certeza de que depois deste texto eu posso escrever outro, depois deste livro um outro, e nada é tão importante para ser levado miseravelmente a sério, como se fosse uma questão de status e posteridade.
Qual a sua maior preocupação ao escrever?
Que o texto tenha ritmo e fluidez, seja surpreendente e divertido para o leitor.
A literatura tem alguma obrigação?
Não.

 

Prossigamos: quem ainda dá nome aos personagens?

Ok, parei com as provocações.

Voltemos ao narrador.

Lembro-me bem de uma aula de Teoria da Literatura em que a professora explicava a originalidade do narrador da Madame Bovary. O narrador passava a não dar palpite na história o tempo todo; essa quebra, ainda que não total, deu um ar mais realista ao romance. 11 Pensei nesse narrador flaubertiano enquanto lia Noites de alface, aquele tipo de narrador que de vez em quando (mas não a todo instante) dá uns pitacos, como se comentasse as coisas da vida com o leitor. Tal como na descrição da insônia de Otto:

 

Ele pensava muito na morte, em como seria dormir para sempre e não acordar mais. Nessas horas, procurava ficar imóvel e fingir que havia morrido, tentar imaginar como seria ter um corpo sem vida, boiando num vazio eterno, não tornar a abrir os olhos, essas coisas animadas e edificantes nas quais a gente pensa quando não consegue dormir. (grifo nosso)

 

Viu o comentário no final da citação? Ali o narrador já deixou de descrever o Otto e te deu um cutucão, caro leitor, fazendo uma piadinha.

Para terminar esta seção, intitulada nos meus rascunhos de “essas bobagens todas”, confesso que Noites de alface aumentou a minha curiosidade a respeito da obra de certos cidadãos como o Balzac – com sua Comédia Humana – e o Gonçalo Tavares – com sua coleção O Bairro. Se foi tão bom conhecer a vizinhança inventada por Barbara, por que não conhecer outras vizinhanças?

(Aos que aproveitarem o ensejo para recomendarem parar de ler e tentar conhecer os vizinhos de verdade, eu me adianto dizendo que: não, obrigado, fica pra próxima.)

Com vinagrete

O que é o vinagrete senão um conglomerado de verduras diversas, que, picadinhas, dão um sabor peculiar à alface que temperam?

Leitor obsessivo que sou, fico procurando nos novos livros dos meus autores favoritos pequenas referências às obras anteriores, frases, expressões ou situações significativas que se repitam, pedacinhos de cebola ou pimentão. Easter eggs. Para um leitor obsessivo, todo livro novo tem vinagrete. Mesmo que não seja intencional e o autor negue dizendo que às vezes uma casa amarela é apenas uma casa amarela, eu sigo achando que o livro tem vinagrete e zé fini!

Tudo começa com a cor da casa em que Ada e Otto viviam: amarela. Sim, é uma cor bonita, que não necessita de justificativa. Mas também é a cor definidora da primeira publicação da escritora, O livro amarelo do terminal – que acabou de ser reeditado pela Cosac Naify, inclusive. Como referência a O verão do Chibo, aceito a cantoria do carteiro Aníbal:

 

“Se você canta ‘Mary tinha um carneirinho’ desafinando todas as notas, não há outro remédio senão ser feliz”, proclamava ao pessoal da farmácia.

 

Aníbal lembrou-me do narrador do romance escrito em parceria com Emilio Fraia, que também cantava sempre outra canção: “Eu tenho um bolinho de arroz”. Outra referência a este livro se encontra numa das línguas em que foram redigidos os formulários transcritos por Teresa: búlgaro. 12 Endrigo, o escavador de umbigo, por sua vez, dá o ar de sua graça em um papo de acampamento sobre coisas nojentas – como o que se encontra no órgão corporal estudado pelo protagonista do livrinho infantil:

 

Aí a conversa mudava de rumo, passando para baratas que comiam meleca do nariz das crianças adormecidas. “Como aqui, a gente está dormindo no chão e elas podem vir devagarzinho… só pra comer a nossa catota”, anunciava um dos moleques. “Porque é superdoce, sabe?”

 

Aliás, acampamentos de férias também são o cenário das aventuras de A máquina de Goldberg. O que conclui a minha busca por vinagrete. 13

Com molho rosé

Noites de alface é um livro despretensioso e gostosinho de ler.”

A citação é minha e a copio pois estou prestes a contradizê-la, ou quase. É que a leitura me lembrou de A visita cruel do tempo, de Jennifer Egan, um livro bem ambicioso – ainda que, para alguns, pareça o resultado aleatório de uma oficina literária qualquer. O romance de Barbara não muda totalmente o estilo de um capítulo para o outro, mas os capítulos são quase contos que podem ser lidos individualmente. Noites de alface não nos desconcerta quando dedica cada capítulo a um personagem diferente (afinal, são todos vizinhos e o Otto de alguma forma finda aparecendo no pensamento dos outros – a viuvez recente é um bom motivo para isso), mas permite que o leitor sinta-se íntimo dos personagens secundários. Nesse sentido, há semelhanças com A visita cruel do tempo. 14

O que desmente um pouco da falta de pretensão do livro. Mas tudo isso é construído de um modo simples, ou que assim parece – quase como se recusando a jogar o jogo besta das orelhas de livro, que tanto me irritam. Vanessa Barbara faz parecer natural que se escreva um romance assim. Não é fácil.

Lembrei-me de outros livros também – e é curioso que todos tenham sido escritos por mulheres e tenham me pegado de jeito este ano. Garota Exemplar, de Gillian Flynn, é um romance que eu recomendaria a Otto, do jeito que ele é fã de narrativas policiais e de reviravoltas. Mariana, personagem de destaque no sexto capítulo, me lembrou da Bernadette, do romance Cadê você, Bernadette?, de Maria Semple – uma pessoa complexa que precisa fortemente de uma distração (ajudar os vizinhos é sempre uma boa) para não se tornar uma ameaça à sociedade, solitária. O Quiçá, de Luisa Geisler, me veio à mente por conta do amor 15 que se vê pelos não protagonistas – o Gui de Quiçá é tão especial quanto o Nico de Noites de alface.

Por fim, a leitura de O que deu para fazer em matéria de história de amor e de Nada a dizer, ambos de Elvira Vigna, e do romance que estou a resenhar 16 me autoriza agora a escrever os textos sobre as duas autoras para o Desafio Autoras de Literatura Contemporânea Brasileira. Não sei se vocês ainda se lembram das regras, mas eu me recordo muito bem delas.

Com… whey de morango?

Esta seção é dedicada a pequenas notas pessoais. Decidi não desenvolvê-la, pois o texto já está enorme.

Só queria dizer que:

* gostei da citação do whey;

 

Em quase cinquenta anos de casamento, Otto e Ada se interessaram por diversos assuntos para além das partidas de pingue-pongue e do Canal Animal. Houve uma época em que só falavam de culinária e jardinagem. Os suplementos para musculação foram fonte infinita de curiosidade, mas só até o sobrinho de Iolanda desistir do fisiculturismo e eles ficarem sem material de consulta.

 

* imaginei a autora vestida como todas as personagens de uma cena, meio como naquela mais famosa de Quero ser John Malkovich – imaginei-a como a Ada também, mesmo não estando no trecho.

 

Podia comentar algo sobre suas roupas, o que era difícil, pois Teresa se vestia pessimamente, sempre com bermudas velhas, camisetas puídas, calças com elástico e chinelos de pano. Ela argumentava que eram boas roupas para datilografar, pouquíssimo incômodas. Já Mariana, mesmo em casa, usava vestidos de seda e sandálias delicadas, escovava os cabelos e se perfumava. Será que, quando fosse mais velha, ficaria desleixada?

 

Com molho de framboesa

Antes de voltar de Recife, há poucos dias, fui num restaurante especializado em saladas. Pedi uma chamada “Sol da Flórida”: alface, cenoura ralada, tomate, queijo minas, azeitonas, pedacinhos de bacon, croutons, pedacinhos de frango. Tudo misturado com molho de framboesa. Uma delícia.

No dia em que retornei, foi a vez do meu pai ir ao Nordeste. Aproveitei o ensejo para deixar meu exemplar de Noites de alface com minha tia, para que ela pudesse devorá-lo durante a estadia do meu pai e depois o devolvesse por meio dele. E ela assim o fez.

Meu pai chegou e uma das novidades que me trouxe – além de três pacotes de “nêgo bom”, um docinho de banana e goiaba típico da região – foi a de que tinha começado a ler Noites de alface meio que sem querer no voo e… estava gostando. Disse que adorou o Nico.

 

(…) Moral: se você ri com a mesma cara com que se afoga, mude seus hábitos.

 

Eu não tinha o que falar. Só sorri. Mas o sorriso interno era muito maior do que o externo.

Para compensar a falta de palavras no momento, descontei na resenha.

Desculpa, mas o livro merece.

  1. A sensação é parecida com a de quando sai um novo romance da coleção Amores Expressos – depois de já termos visto os documentários com os escritores e criado alguma expectativa a respeito dos enredos. É legal, mas meio irreal.
  2. Sempre achei que alface fosse O alface, só sendo chamado pelo feminino quando se subentendiam as “(folhas de) alface”. Descobri que estava errado este ano. Só para ser mais constrangedor, descobri isso numa mesa cheia de literatos. Desse jeito, não há reputação que me salve, tsc tsc. Ainda estou sofrendo para me habituar com a imagem de que alfaces são meninas.
  3. Se por acaso você se sentir da mesma forma, seus problemas acabaram! Em outro texto, a ser publicado ainda esta semana, explorarei formas criativas de fazer esse romance durar mais, para que você não sofra como eu. Aguarde!
  4. Ah, Otto, vem cá me dar um abraço. Eu te entendo. É duro não conseguir dormir. Mas pior ainda deve ser tomar chá de alface! Blergh.
  5. Não, pera, confundi. Ele a chamou de “excelente”. “Exemplar” é a Amy, de Garota Exemplar, romance de Gillian Flynn.
  6. Lógico que o que é legal para uns pode ser chato para outros. Eu, por exemplo, morro de medo do Stendhal, não gostei muito do Flaubert e me assusto com as páginas sem fim produzidas pelo Balzac. Por outro lado, amo o Dodô – apelido carinhoso de Dostoievsky – e tenho uma relação de “nunca te li, sempre te amei” com o Tolstói.
  7. Pausa para um bocejo DAQUELES.
  8. Ainda que o autor tenha confessado que não tenha escrito o livro dessa forma apenas para me agradar, como dá pra ler na entrevista que fiz com ele.
  9. (Esta nota de rodapé e a próxima são citações diretas do texto de Nick Hornby. Eu só concordo com tudo que ele diz.) Qualquer pessoa que esteja fazendo uma oficina literária sabe que o segredo de um bom texto é enxugá-lo, retirar os excessos, peneirar, cortar, podar, aparar, remover tudo quanto é palavra supérflua, resumir, resumir, resumir. Em toda resenha sobre um escritor como, por exemplo, o sul-africano Coetzee, encontra-se a palavra “econômica” ou “econômico”, usada de maneira elogiosa; acabei de entrar no Google, onde digitei “J. M. Coetzee + econômico” e consegui 907 resultados, com raríssimas repetições. “A linguagem econômica, porém rica, de Coetzee”, “neutro no tom e econômico no estilo”, “uma sucessão de sentenças refinadas e econômicas”, “O grande dom de Coetzee – e trata-se de um dom que ele nos oferece gentilmente – reside em sua bela e econômica linguagem”, “linguagem econômica e poderosa”, “um livro econômico e arrepiante”, “paradoxalmente econômico e ao mesmo tempo ricamente escrito”, “beleza econômica e dura”. Sacou? Economia é uma coisa boa.
  10. Coetzee, obviamente, é um ótimo romancista, de forma que não considero nenhum pecado ressaltar que ele não é o escritor mais engraçado que existe. Na verdade, quando paramos para analisar, vemos que pouquíssimos romances na tradição Econômica são lá muito animadores. As piadas são praticamente extirpadas, de forma que, em um processo de adequação de registro na prosa, elas são as primeiras coisas a saltarem fora. E, na peneiração, existe um lance que eu simplesmente não entendo. Por que sempre para quando o trabalho em questão foi reduzido a 60 ou 70 mil palavras? Será que esse é o tamanho mínimo para um romance publicável? Tenho certeza de que, com um pouco de esforço, daria para chegar até 20 ou 30. Na verdade, porque parar em 20 ou 30? Por que escrever qualquer coisa? Por que não rabiscar o enredo e uns dois temas em um envelope e deixar tudo assim? A verdade é que na ficção ou na sua criação não há nada de muito utilitário, e acho que as pessoas ficam loucas para dar a impressão de que se trata de um trabalhão desgraçado, e que dão um duro danado, que é coisa de macho, pois, no fundo do fundo, trata-se de uma coisinha bem “fresca”. A obsessão pela austeridade é uma tentativa de compensar, de fazer com que a literatura se pareça com um trabalho de verdade, tipo pegar na enxada ou derrubar árvores. (É também por isso que o pessoal da publicidade trabalha vinte horas por dia.) Mandem brasa, jovens escritores – desfrutem de uma piadinha ou de um advérbio! Vocês já viram a grossura dos livros vendidos nos aeroportos? A verdade é que as pessoas curtem informações inúteis – e, de forma contrária, os escritores dos escritores, os que podam e peneiram, tendem a depender mais da aprovação dos críticos do que dos direitos autorais para viverem.
  11. Se eu estiver falando besteira, podem me corrigir. Eu nem sabia que alface era menina.
  12. É sempre interessante lembrar que a Bulgária não existe.
  13. Mas não conclui minhas teorias paranoicas. Tal como em O livro amarelo do terminal, Vanessa Barbara novamente criou um microcosmo cativante: um terminal rodoviário no livro de não ficção; no de ficção, um bairro, uma vila, uma vizinhança em que outro serviço público ganhou destaque: o dos correios. Amarelo igual. O verão do Chibo e Endrigo, o escavador de umbigo têm crianças como protagonistas: personagens fascinantes, tratados sem condescendência. Em A máquina de Goldberg, temos a transição necessária (para a autora? para os leitores?) para a próxima obra: uma criança e um velho, ambos com igual protagonismo. Assim, nos preparamos para Noites de alface, onde os velhinhos têm a preferencial. Eu poderia seguir o raciocínio, mas acho melhor fazê-lo em outra oportunidade, fora de uma nota de rodapé.
  14. Essa coisa meio caleidoscópica me lembrou de O curioso caso de Benjamin Button – principalmente pelas semelhanças entre a trajetória da personagem interpretada por Tilda Swinton e os sonhos do jovem Nico de vencer grandes extensões a nado.
  15. Desculpa. Eu sou meloso assim mesmo.
  16. Oi, Saramago.