Muitos são os percalços no caminho de quem vive de escrita.

De um lado, o inédito. Alguém que sabe que escreve bem, a namorada elogia logo na primeira linha, a mãe se diz orgulhosa, o amigo – que amigo, hein? – aponta um erro de concordância e falta de sentido na frase do clímax. “Ele que não entendeu”, pensa o talentoso prosador nunca publicado.

O emprego temporário como redator, mole para quem é escritor por natureza, serve para pagar as contas, porque todo mundo sabe que há um abismo entre ser escritor e ser redator. Esse ser de talento nato nas letras escreve em seu blog sobre os talentos medíocres, aqueles com destaque nos periódicos culturais e literários cada vez mais numerosos no país, e que publicaram há pouco mais um romance. “Pff, como se romance pudesse ser uma historinha de cento e tantas páginas”. Maledicências são poucas perto desses usurpadores de oportunidades alheia!

A preguiça sufoca o talentoso escritor inédito. O seu emprego temporário de redator não o deixa terminar seu romance, seu livro de contos, a sua novela e sua coletânea de ensaios.

Não há problema algum em ser estrela no anonimato. O empecilho é ninguém perceber suas estruturas intrincadas, mas eloquentes, suas grandiosas e formidáveis analogias, seus engenhosos anacolutos, suas entrelinhas essenciais e, acima de tudo, seus finais de tirar o fôlego.

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Do outro lado, o escritor consagrado, que está em sua escrivaninha, conta quantos novos começos de romance jogou na lixeira após escrever uma coluna de retalhos para um dos jornais em que publica mensalmente. Confusão e cólera percorrem seus pensamentos causando uma enxaqueca; não sabe ao certo se esse foi um texto réplica ou tréplica ou contrarréplica indireta para um desafeto, uma constatação sobre o mundo das letras, sobre o cotidiano da cidade onde cresceu ou uma crônica mais bem paga que seu último livro. Não. A cabeça lateja, culpa da última bebedeira. Checa o e-mail:

  • Facebook “Thais G. e outras 37 pessoas te marcaram em uma publicação”;
  • [Jornal] Comentário: “Seu babaca analfabeto…”;
  • “RES: Pequenos ajustes e comentários no manuscristo de “A noite…”;
  • 50% off nas compras acima de R$234,44;
  • “Entrevista para o Portal Literatura em Foco”;
  • “Entrevista para o Jornal Hora do Tempo”;

Ele odeia entrevistas e eventos. Não é celebridade. Não é pago como uma, com certeza. Anos antes colocaria dedicatórias quase sinceras nas noites de lançamentos. Hoje é um pequeno visto, no máximo, em caso de leitores conhecidos, a data e local. O grande martírio são as entrevistas mesmo. Qual pergunta terá de responder agora? “Dá para viver de literatura no país?”; “Quer ver seu livro adaptado para o cinema?”; “Quem é a voz da literatura contemporânea?”; “Há um paralelo entre sua novela e a obra de Aleis Johnson?”; “O Sr. critica as obras de ‘contra-anti-cultura’ em seu Ensaio sobre a Paciência, o que pensa, então, sobre a hipermodernidade?”; “O seu romance trata da metalinguagem sobre a arquitetura da filologia pós-moderna somada à polifonia pynchoniana?”; e, a mais terrível de todas, “Você poderia ler meu manuscrito e me dar umas dicas?”. Nos últimos tempos responde com um sim ou não, sem delongas, teses ou frases de efeito. Quantas vezes não imaginou pegar o dito cujo pelo colarinho e vomitar, simplesmente vomitar, todo o desconforto em bile na cara desse entrevistador amador, que leu a orelha do seu livro para fazer cinco perguntinhas.

O escritor consagrado não pensa em quantos editores e escritores consagrados são seus amigos, mas quantos pretensos-escritores são seus inimigos não declarados. Endireita a postura na cadeira e acende um cigarro, abre um rascunho e responde o e-mail de um redator, que também é blogueiro e escritor inédito, como a maioria o é, para uma entrevista no tête-à-tête. O escritor consagrado chama de bate-papo sem roteiro, improvisado. Ele sabe que o jovem não responderá na hora para aparentar um pouco de ocupação.

O jovem respondeu no dia seguinte, marcando a entrevista – digo, o bate-papo.

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— É mais difícil ser um bom escritor ou uma boa pessoa?

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Ao chegar em casa, um dos dois se matou.