Azul é a cor mais quente estreou nos cinemas com uma enorme trilha de polêmicas: ganhador de Cannes em um ano em que todas as fichas estavam nos novos de Jia Zhang-Ke e Asghar Farhadi; uma cena de sexo de sete minutos que foi chamada de tudo entre falsa, visceral e pornográfica; uma atriz que anunciou ter sido abusada pelo diretor e que jurou nunca mais trabalhar com ele, mesmo que seu filme seja o responsável por mudar sua carreira.
Quando tanto já foi falado sobre um filme, é muito difícil que ele sobreviva às expectativas e que seja tão bom, incômodo, inédito ou polêmico quanto se disse. É esse o caso de Azul é a cor mais quente: o filme não é tão incendiário quanto foi pintado.
Em meio a tanta discussão, pouco foi dito sobre o diretor. Abdellatif Kechiche é um franco-tunisiano que nunca conheceu tamanha fama, mas já entregou dois filmes competentes e bem recebidos pela crítica: O segredo do grão e Vênus negra. Embora o primeiro seja, apesar de bom, um tanto longo e esquemático, o segundo é um trabalho forte, sensual e chocante. Seu novo longa se situa em algum lugar entre os dois.
A primeira expectativa frustrada é a que considera o ganhador da Palma de Ouro o melhor filme do ano. Embora saibamos que festivais têm “estilo” e que o gosto do júri é algo a ser levado em consideração, parece fácil imaginar que o ganhador de um prêmio tão concorrido e tradicional seja extraordinário. Não é. O longa de Kechiche é bom, mas irregular, com flashes de genialidade em meio a algo que soa esquemático, engessado e um tanto didático.
O título em francês, A vida de Adèle, é mais significativo e exato do que sua versão em inglês e português. Isso porque o filme é exatamente o que o título afirma, o retrato de um período na vida de uma mulher. Seguimos Adèle de seus 15 anos até 20 e poucos, acompanhamos o primeiro namorado e, então, o intenso e tumultuado relacionamento com Emma, uma estudante de artes de cabelos azuis. As duas começam o namoro, moram juntas, se formam, tornam-se adultas e, então, porque parece necessário para que a vida continue, se separam.
Desde o primeiro minuto, Kechiche gruda sua câmera em Adèle. Na graphic novel da qual o filme foi adaptado, a protagonista chama-se Clementine, e a impressão é que o cineasta alterou o nome da personagem para coincidir com o nome de sua atriz (a desconhecida Adèle Exarchopoulos) e assim confundir ficção e realidade. O cinéma-verité, aquele que busca captar a realidade com o máximo de crueza, despir-se dos artifícios da ficção (como, por exemplo, o também ganhador da Palma de Ouro, Entre os muros da escola), é uma referência constante em um filme que, entretanto, está muito distante dele.
Isso não é um problema. A manipulação e a estetização conscientes não são um problema, nem é o roteiro redondo, com começo, meio e fim muito bem definidos (o que talvez explique a vitória em um ano de júri presidido por Steven Spielberg). Ao contrário, a confusão entre atriz e personagem e a extrema naturalidade da interpretação de Exarchopoulos são pontos fortes do filme. Adèle é universal, seu tormento e sua dor podem ser sentidos e reconhecidos por qualquer espectador na plateia.
O que se torna um problema é a falsidade dessa aparência de realidade em outros momentos. Ao mesmo tempo em que exibe suas atrizes sem nenhuma maquiagem, mesmo aquela que pareceria natural ao dia a dia, Kechiche elimina qualquer sugestão de pelos nos diversos closes que faz em vaginas e axilas. Elas têm olheiras, mas não depilação vencida, o que provavelmente colaborou para as acusações de exibicionismo, pornografia e sensacionalismo ao diretor, principalmente em um país que está acostumado a exibir Juliette Binoche de axilas peludas há tanto tempo.
A depilação das atrizes é apenas um aspecto dessa falsa realidade. Ainda que acompanhe a protagonista como uma sombra, recheando os filmes de tempos mortos e momentos entediantes, falta naturalidade nesse acompanhar da direção. Kechiche é controlador demais para ser voyeur. Falta-lhe o desprendimento e a espontaneidade com que Noah Baumbach acompanha sua Frances Ha, ou com que Hilton Lacerda entra no quarto dos protagonistas de Tatuagem.
É ao entrar no quarto que a ilusão de neutralidade se quebra mais fortemente. A câmera que acompanha o casal na cama é ativa, busca ângulos, sombras, cavidades. O sexo em Azul é a cor mais quente é sim pornográfico, porque visa excitar o espectador, inseri-lo no desejo das protagonistas. Acusou-se o cineasta de, mais uma vez, achatar a experiência homossexual feminina para agradar ao olhar do homem. É mentira. Suas atrizes estão entregues e espontâneas como convém; o que existe é um olhar ativo da câmera que visa a excitação.
Mais uma vez, isso não seria um problema em si se essa busca não tornasse esquemática a decupagem. O didatismo é na verdade o maior problema de todo o filme. A cada plano é possível prever o seguinte, porque desde o início está claro o caminho para o qual o diretor quer conduzi-lo. A impressão que fica é que, sobretudo na primeira parte do filme, personagens são inseridos apenas para, muito claramente, explicar a dimensão do tédio de Adèle e indicar sua orientação sexual. É completamente dispensável o beijo entre a menina e uma colega, a força da atração de Emma seria suficiente por si só.
Também são desnecessários os muitos momentos em que o filme analisa a si mesmo, em que professores discorrem sobre temas que estão imbuídos no roteiros. Novamente: a história é forte suficiente para que passasse sua mensagem sozinha. No final, porque o filme foi conduzido com a mão muito forte do diretor em vez de permitir que sua personagem falasse, a sensação é de que não conhecemos Adèle. Passamos três horas grudados em seu rosto – são utilizados quase que só close-ups e planos próximos –, mas não a conhecemos. Não sabemos se queria ser professora, ou se Emma estava certa e ela tinha apenas medo, não sabemos o que há dentro dela além dessa paixão.
É uma pena, porque o trabalho das atrizes dá vida a dois seres humanos que parecem extraordinários, complexos e profundos. A delicadeza da interpretação de Exarchopoulos cativa, mas o verdadeiro tour de force é Léa Seydoux. A atriz veterana encarna Emma nos mínimos trejeitos, apaga todas as memórias de seus papeis anteriores e se confirma como uma grande atriz.
Há momentos geniais no longa: a última meia hora, que acompanha a dor de Adèle após a perda da amante, é pungente, dolorida e íntima, tudo que o resto do filme não foi. Nesse momento, finalmente a câmera se afasta e dá lugar ao olhar perdido, a boca meio aberta e a beleza estonteante da protagonista. Apenas se fixa em seu rosto e deixa que os sentimentos apareçam.
Azul é a cor mais quente está longe, muito longe, de ser um filme ruim. É falho e carece de um diretor que não soube afastar-se, ser menos autor, deixar que o conjunto de sua obra funcionasse sozinho. É sem dúvida um dos melhores filmes do ano, mas não o melhor; falta-lhe fôlego, força para sair fora da cartilha. Ainda assim, enquanto lamento a perda de Um toque de pecado, aguardo com ansiedade os novos trabalhos de Abdellatif Kechiche.
adorei sua critica. eu vi o filme sabado com minha filha de 18 anos. gostei muito da atuaçao de adele. minha critica feita na minha pagina retrata um pouco do que acabei de ler na sua. Parabens pelo sua notavel e exemplar escrita. abs, Marcia Rachel
adorei sua critica. eu vi o filme sabado com minha filha de 18 anos. gostei muito da atuaçao de adele. minha critica feita na minha pagina retrata um pouco do que acabei de ler na sua. Parabens pelo sua notavel e exemplar escrita. abs, Marcia Rachel
Realmente não entendo porque uma vagina depilada poderia estragar um filme tão bem escrito. Até quando vamos continuar colocando o órgão sexual feminino em um pedestal e associando sempre a pornografia e exibicionismo? Toda mulher se depila hoje em dia no mundo todo!! Temos que parar com essas regras e algemas que a sociedade machista impõe. Dizer que é um filme pornô é a total falta de cultura e auto critica coesa. Comprei o filme pelo iTunes e não me arrependo, é fantástico! As cenas mais picantes passam desapercebidas perto do restante!! Normalmente que não gosta é feminista ou lésbica ou refém de uma sociedade q impõe que a mulher não deve nunca se espor: