por Stefano Calgaro

Pier Paolo Pasolini, filólogo, intelectual marxista, poeta, romancista, cineasta, teórico. Como Glauber (Rocha) disse sobre ele – e em seus filmes podemos ver isso – “é violento, tímido e irônico ao mesmo tempo”1. Ácido. Seco.

Édipo Rei (1967), filme de Pasolini sobre a tragédia homônima de Sófocles. Claro que, feito já na segunda metade do século XX, se o filme passasse longe de um viés do mito de Édipo (freudiano), faltaria algo (talvez?). E apesar da relação estabelecida por Pasolini através de seu prólogo e epílogo, não é só isso que coloca Édipo lá em cima.

Aqui um parêntese: Pasolini poderia se encaixar, assim como muitos outros cineastas marxistas (embora seja muito limitador à obra geralmente muito diversa destes cineastas) começaram a fazer na década de 60, a assumir um discurso marxista e adaptar o teatro brechtiano, o distanciamento, a quebra da quarta parede, o teatro épico em geral à sua maneira. (Godard, Glauber, Jean-Marie Straub, Danièle Huillet, Miklos Jancso, Tomás Gutiérrez Alea e por aí vai).

O filme começa em algum lugar não específico (embora nos indique Tebas), em torno da década de 1940, com um parto. Vemos de fora da casa. Em seguida, a mãe faz um piquenique com suas amigas. Elas correm num campo aberto enquanto o bebê fica na toalha sobre o gramado. Vemos, em sua maioria, através de um ponto de vista da criança deitada. Elas correm, riem. A criança é amamentada. A mãe nos olha (para a câmera). Em contra-plongée (explicarei mais tarde) uma panorâmica vendo os campos, o gramado, as altas árvores – uma panorâmica-ponto de vista da criança.

O pai volta da guerra e dialoga (à la cinema mudo, com cartelas), mas com olhar de enfrentamento ao filho: “tu estás aqui para ocupar meu lugar no mundo, enviar-me ao nada e roubar-me tudo que tenho”. O pai e a mãe saem, se divertem, dormem juntos. A mãe fica deitada. Música de uma flauta rudimentar. O pai levanta e vai até o filho. Pega-lhe pelos tornozelos. Agora a criança tem os pés e mãos amarrados numa vara sendo carregada por um andarilho. Entre Tebas e Corinto. Aqui, oficialmente Sófocles começa. Deserto.

Vemos a juventude de Édipo, ele indo até o oráculo de Delfos ter com ele o seu futuro, a primeira profecia acontece, mata a esfinge, a peste chega, Édipo descobre a profecia, Jocasta (interpretada pela mesma Silvana Mangano do epílogo) se mata, Édipo se cega… Como todos conhecem. Mas quem fez foi Pasolini, não Franco Zeffirelli (embora só tenha visto Romeu e Julieta, não é difícil imaginar o que teria sido).

É maravilhoso. Sempre com certo distanciamento seco, os cortes secos, esse temperamento ácido de Pasolini sem as preocupações de continuidade, verossimilhança, verossimilhança de cenários, interpretação de atores, mas apenas com a reflexão que está oferecendo.

Com este filme resolvo o meu complexo de Édipo. Liberto-me de minha mãe. O meu estilo é bárbaro e arbitrário. A tragédia de Édipo é uma tragédia porque o povo não a conhece. Desde que o povo a conheça deixa de ser uma tragédia. O meu personagem não é um intelectual em luta com o destino. É um jovem quase primitivo, que se vê lançado numa aventura e, durante essa aventura, descobre que foi amante da própria mãe e assassino do próprio pai. No final, depois que a mãe tomada de remorso se suicida, Édipo fura os olhos, mas não foge do mundo. Vira um poeta. Sai com seu guia pelo mundo: às vezes um poeta decadente, às vezes um poeta político, às vezes um poeta metafísico. E como poeta metafísico, apenas uma obsessão: o campo verde onde brincava na infância e a imagem do seio materno.2

Aliás, comenta que adotou um dialeto siciliano e o resultado foi que a maioria dos italianos não o entende. Pois “nossa língua vive na mais completa desordem, não se pode falar em literatura italiana (…) somos escravos de uma velha cultura, o mito da renascença nos oprime”3. É com Édipo então que quebra o mito do clássico e mostra a barbárie histórica.

Édipo se cega. O mensageiro lhe dá uma flauta e o guia. Prólogo. Vinte anos após o epílogo. Édipo cego, guiado por Ângelo (anjo?). Ângelo é interpretado pelo mesmo ator do mensageiro. Ângelo o deixa na frente de uma catedral. Édipo toca a flauta (mesma música que toca durante o filme). A panorâmica (do olhar de Édipo) começa. A catedral, os carros, as pessoas. Mesmo cego, não suportando seu contorno, grita para Ângelo, que brinca com as pombas. Ângelo o leva para outro lugar. Agora mais isolado, com algum verde, mas uma longa rua, como fundo, uma indústria. Édipo toca flauta enquanto Ângelo joga bola com as crianças. Vendo seu contorno, Édipo chama Ângelo para que lhe tire de lá.

Acho que neste filme estas panorâmicas são as que melhor expressam a teoria do discurso-indireto-livre e do cinema de poesia que Pasolini se dedicou e notificou em seu livro Empirismo herege. Como discurso-indireto-livre, compreende-se o mesmo que na literatura. E aqui se dá misturando, através da subjetividade do personagem, um objeto de discurso do narrador, o “contágio estilístico autoral se fundira de maneira ambígua com a personagem, cuja subjetividade se convertia em plataforma para a experimentação e o virtuosismo estilístico”4. Pois são eles que, desde sua primeira aparição até sua última (quando eles encontram um padrão estético) não terão uma função apenas de nos situar no espaço.

O contra-plongée. “A contraplongée (o tema é fotografado de baixo para cima, ficando a objetiva abaixo do nível normal do olhar) dá geralmente uma impressão de superioridade, exaltação e triunfo, pois faz crescer os indivíduos e tende a torná-los magníficos, destacando-os contra o céu aureolado de nuvens”5.

No cinema, geralmente (e acima de tudo quando se trata de uma decupagem mais clássica) o contra-plongée é usado com esta função. Geralmente. Se há ainda alguma dúvida desse artifício (de forma-função), por mais que ele não seja tão duro quanto o é na linguagem escrita, vide Orson Welles (que por sinal atuou em um curta de Pasolini, um segmento do longa Ro.Go.Pa.G, chamado La Riccota – que o fez ficar preso por seis meses por blasfêmia contra a Igreja e a burguesia italiana6). Orson Welles foi quem mostrou as relações de poder, econômicas e sociais, seja com a vida de um magnata, seja com uma família burguesa em decadência, seja em Sheakespeare ou em Kafka. Vide as relações de poder entre o Magnata Kane e sua esposa em Cidadão Kane. E por isso venho falar do contra-plongée de Pasolini. Mais exatamente quando Édipo vai proceder de acordo com a primeira profecia do oráculo (matar seu pai). Ele mata os guardas e mata o seu pai. E quando o faz, está em silhueta, um sol invadindo o quadro inteiro. Quando mata seu pai, está em contra-plongeé. O pai (em offscreen, isto é fora da tela, abaixo de Édipo), Édipo em primeiro Plano e o sol ofuscando, lá do fundo, a  visão, invadindo o campo. Acima de Édipo. Ou está em plongée? Ou o sol é que está em cima, e ele, Édipo, esmagadoofuscado embaixo?

Plongée, relação de poder. Política em uma composição de plano. O pai abaixo de Édipo e o sol acima. Apolo acima. A ideologia grega da submissão humana aos deuses. Ao destino divino e incontornável. À profecia dos oráculos. A tragédia grega. E mesmo quando mata e não há o contraplongée, o sol de fundo, acima de Édipo, iluminando, ofuscando, invadindo, cegando. É o começo de sua profecia. E quando a profecia se completa, a tragédia se revelou incontornável, no escuro total, após Jocasta se suicidar, Édipo se cega.

Apesar da violência de Pasolini, seu amigo Alberto Moravia comenta sobre seu assassinato (de Pasolini) que “na realidade, Pasolini não era inimigo da violência não só por temperamento, pois era um homem meigo, doce e gentil e eminentemente dotado daquela piedade cujo desaparecimento lamentava, mas também, e sobretudo, porque a descoberta da nova violência massificada estava no centro das suas mais profundas preocupações culturais e políticas”.7

Lembrar-se do que Édipo diz (ao estilo do cinema mudo, a cartelas) ao cego Tirésias, que toca a flauta: “e tu, que estás aqui cego e sozinho, cantas… como gostaria de ser tu! Tu cantas o que está mais além do destino”.

Mando o curta La Ricotta, caso alguém se interesse:

http://www.youtube.com/watch?v=U-FxFN0VTAE

Sobre o colaborador: Stefano Calgaro é estudante de cinema, participa na realização de curta-metragens e projetos audiovisuais.

  1. ROCHA, Glauber, O Século do Cinema, pp. 276
  2. Ibidem, pp. 279
  3. Ibidem, pp. 281
  4. STAM, Robert, Introdução à teoria do cinema, pp. 133
  5. MARTIN, Marcel, A linguagem Cinematográfica, pp. 43
  6. ROCHA, Glauber, O século do cinema, pp. 279
  7. PASOLINI, Pier Paolo, Últimos escritos, pp. 60