Aparentemente, a pergunta é das mais temidas em festas literárias como a Flip. Você está à procura de um lugar para almoçar rapidinho antes de um evento, quando um cidadão brota das pedras irregulares do calçamento e tasca a bendita interrogação. Muita gente diz “Não!” na cara dura e escapole. Eu sou da turma do “Sim, mas agora estou meio apressado e tals, fica pruma out…” e, às vezes, volto mesmo outra hora.

Mas, na vida real – isto é, sem ninguém ameaçá-lo com edições artesanais debaixo do braço: você gosta de poesia? Se for pra simplificar, minha resposta está mais próxima do “não”, igualzinho ao povo da Flip. Em geral, não procuro ler poesia, não termino livros de poesia, não tenho muita paciência com o que vejo de poesia por aí – blog, então, nem entro no assunto. O livro de poesia que escolho como o melhor do ano costuma ser o único que li nele.

Daí você me pergunta: Mas, Tuca, se poucas editoras publicam poesia, se as tiragens são ínfimas, se a divulgação é pífia, se tudo parece indicar que brasileiro não gosta de poesia, qual a necessidade de vir tripudiar? E eu respondo que: nenhuma, até porque tripudiar não está nos meus planos, viu?

Se, à guisa de simplificar, digo que não gosto de poesia, certamente omito muita coisa. Omito uma adolescência inteira regada a William Shakespeare1, Carlos Drummond de Andrade2, Arnaldo Antunes3, Augusto dos Anjos4 e Paulo Leminski5. Omito também uma das razões para eu ser um leitor tão voraz: um professor de literatura do ensino médio, um poeta dos bons. Toda vez que leio um bom livro de poesia, lembro-me dessa omissão toda e me pergunto: “por que raios eu não leio mais poesia?”6

Entendeu o problema de simplificar as coisas?

* * *

A questão é: 2013 foi um ano atípico na poesia. Não só no geral, por ter sido o ano do bigode7, em que Leminski estava todo pimpão na lista de mais vendidos. 2013 também foi atípico no plano pessoal, pois nele eu parei de fazer a pergunta retórica do “por que raios eu não leio mais poesia?” e simplesmente passei a ler mais poesia.

Não é fácil. Digo, assim como um excelente livro de poemas dá vontade de ter mais poética nas suas leituras, o inverso também costuma ocorrer: você não gosta do livro e pensa “arrá! por isso que não leio mais poesia!” (Eu digo você e falo em termos gerais, mas pode ser que seja apenas coisa minha e de poucas pessoas por aí: ah, o perigo das generalizações!) Se fosse pelos livros de poemas regulares – aqueles bons, mas não muito, que a gente não sabe dizer direito se gostou ou não, que “têm coisas boas, mas…”8 –, eu teria lido bem menos esse ano. E, assim, continuaria satisfeito em ler algo do Drummond no Facebook, haicais do Leminski na timeline do Twitter ou uma foto no Instagram de um amigo, que se empolgou subitamente com o que lia e fotografou uma página do livro.

Para além da imbecilidade da confissão – se ninguém deixa de ler romances só por ter lido um romance ruim, por que haveria de ser assim com a poesia? – o fato é que um número razoável de bons livros incentivou-me a ler outros. Cito-os, todos, a seguir.

Um dos primeiros do ano foi o Lero-lero, do Cacaso, na edição baratinha da Coleção Portátil da Cosac Naify. Eu comprei o volume apenas por querer a bolsa da editora na Flip – comprando dois portáteis, ganhava uma. Abri-o pela primeira vez um ano depois, uma curiosidade que surgiu do nada, e descobri que o livro continha toda a poesia do autor, em ordem inversa à cronológica – os livros mais recentes primeiro, as primeiras publicações do autor por último – numa adaptação da máxima bíblica que determina que “os últimos serão os primeiros”. Uma ordem honesta: dá para perceber ele ficando mais tradicional e menos experimental no decorrer das páginas. Persisti na leitura mais por curiosidade, percebendo que, para mim, os melhores estavam nos primeiros terços do livro.

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Na mesma época, li o Poesia é não, da Estrela Leminski. Lembro-me de não ter conseguido classificá-lo direito – talvez pela proximidade entre a poeta e o Arnaldo Antunes, eu não parava de pensar neste, vendo influências que nem sempre pareciam corretas. Depois de lido, achei-o bom-mas-não-muito. Antes de devolvê-lo à biblioteca, no entanto, o livro foi crescendo internamente – eu dava uma lida em um e outro poema no ônibus – e constatei que tinha gostado mesmo do livro. Adoro quando isso acontece e detesto o contrário: me empolgar com um livro e, só depois, perceber que ele merecia um muxoxo.

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Sou desses que gostam de ler literatura infantil de quando em quando. Inadvertidamente, peguei emprestado o Dia de folga, de Jacques Prévert, não sabendo que era de poemas9. Ok, o que não falta são livros para crianças que mais parecem poemas ilustrados, um verso em cada página – penso logo em 13 palavras, de Lemony Snicket, em Fico à espera, de Davide Cali & Serge Bloch, e em A parte que falta, de Shel Silverstein, como bons exemplos. Isso, no entanto, não desmente que enrolei o Prévert até um dia antes da data de devolução. E que livro! Vale a leitura do texto que dá título à obra:

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Pus o meu quepe na gaiola
e saí com o pássaro na cabeça
Como é que é
não se bate mais continência?
perguntou o comandante
Não
não se bate mais continência
respondeu o pássaro
Ah bom
queira me desculpar eu pensei que se batesse continência
disse o comandante
Está desculpado qualquer um pode se enganar
disse o pássaro

Tanto ouvi falar de Um útero é do tamanho de um punho, de Angélica Freitas, que o peguei emprestado tão logo o vi na biblioteca. Adequado que haja um punho no título: lembra “soco”, uma boa palavra para descrever a leitura. Feminista é outra palavra boa e também serve para definir meu 2013, não só com relação às leituras. Na temporada de prêmios literários, minha torcida era por ele(a) – o livro (a poeta). Não levou nada, o que não diminui o meu apreço: Angélica se engalfinhou com certo Paulo pelo título de melhor livro de poemas lido, por mim, no ano. Sinceramente, não consegui decidir até agora: ela me pegou desprevenido e ele me pegou pela nostalgia; ela foi curta e grossa, direto no gogó, e ele quase me afogou com a poesia de uma vida inteira; ambos têm booktrailers dignos. I can’t even

Eu não tenho distanciamento crítico algum para falar de Toda poesia, do Paulo Leminski. Próximo, por favor.

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Andava meio sentimental – ou seja lá qual adjetivo descreva como ficamos quando nosso livro favorito não ganha um prêmio. Fiquei, sei lá, triste ao ver Um útero é do tamanho de um punho perder para Sentimental, do Eucanaã Ferraz, no prêmio Portugal Telecom de poesia. Após uma choradinha no Twitter, a Angélica recomendou o livro do Eucanaã. E eu fui lá e li. Era bom, mas, por vezes, dava medo de não entender nada: não por conta de uma linguagem particularmente difícil, mas porque eu quase não lera os poetas que aqui e ali eram citados10. Enquanto anotava um monte de gente boa para pesquisar, antes de reler os poemas em que faziam participação especial, fui surpreendido pela página 2811, em que começa “El labirinto de la soledad”: “Yuri viu que a Terra é azul e disse a Terra é azul.” Três páginas de poesia que me emocionaram tanto quanto o texto do Cortázar que joguei, inteiro, numa nota de rodapé12. Parecia feito para mim. Brigado, Angélica, pela dica. Brigado, Eucanaã, por tudo.

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Se li mais poesia no final de 2014, é porque essa é uma daquelas coisas que o Gui faz com a gente. Ele instagramou um poema de Rua da padaria, da Bruna Beber, que conheceu numa mesa da Flip. Um bom poema, num livro meia-boca. O importante é que fui atrás não só do livro em questão: e, bah, A fila sem fim dos demônios descontentes, primeira publicação da escritora, é TÃO melhor. Alguém que cita Regina Spektor na epígrafe tem o meu respeito. Quando reunirem a poesia completa da moça, recomendo a ordem cronológica.

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No Twitter, o mesmo Gui falou do poema do relógio de Da arte das armadilhas, da Ana Martins Marques. Não precisei pegar emprestado: esse eu já tinha na biblioteca pessoal, mas nunca dera bola. Por quê? Provavelmente porque sou uma besta. Gostei muito, não só dos poemas longos. É tão difícil gostar uniformemente de um livro de poesia, né? Pois eu gostei desse. Anda comigo todo dia, pro caso de eu sofrer um ataque cardíaco e precisar de um transplante de coração: “Doutor, o senhor consegue conectar os vasos sanguíneos aos riscos emaranhados da capa? Grato.”

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Bem no finzinho do ano, um empréstimo do Gui arrematou a poesia de 2013. Rabo de baleia, da Alice Sant’Anna. Um livro para se ter, não para pegar emprestado; para se ter, mesmo que roubado – lamento só ter cogitado agora a ideia, depois de já tê-lo devolvido. Lida no dia 28 de dezembro de 2013, Alice parecia dizer: “foi um bom ano para a poesia, não foi?”

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Ô.

* * *

Agora é hora de morder a língua. Em especial, no que diz respeito a “blog, então, nem entro no assunto”. Tem muita coisa boa na internet. O problema usual é saber onde está: não vale entrar no blog do amigo de infância e reclamar que não tem poesia boa em blogs. Você descobre pelos RTs e compartilhamentos dos amigos; às vezes, encontra algo na lista de blogs favoritos de um que você já curte. Resenhas e pessoas descaradas que pedem dicas também ajudam. O modo pelo qual se chega a algo é o que menos importa – e assim se vai formando nossa biblioteca virtual.

Há poetas no Twitter13, no Facebook (os poemas de Carlos Moreira são todos públicos, creio), no Instagram14. É fácil encontrar uma Ingrid Coelho (com sua Veja Poesia – recomendo “Boca de urna”), um Gabriel Pardal (com seu Canibal Vegetariano – recomendo “O que vê”), um Ricardo Domeneck (em seu blog Rocirda Demencock, além de seus próprios poemas, há traduções para o português de um monte de contemporâneos interessantes, de tudo quanto é país – recomendo um artigo dele, “Meu dengo, você não fala a minha língua”), um Bruno Latorre (com seu Insustentáveis levezas – recomendo um poema sem título).

Mais que isso: tem quem disponibilize para download uma obra com tiragem esgotada. Um favorito pessoal é o Cigarros na cama, de Ricardo Domeneck, mas há vários que ainda não li e posso citar como exemplos: Carta aos anfíbios, do mesmo autor; Rilke shake, de Angélica Freitas; bénédicte vê o mar, de Laura Erber; 25 Rua do Templo, de Diego Grando.

Dependendo da nossa sorte, encontramos coisas preciosas por aí.

* * *

Três livros de poesia para ler em 2014.

* Cardume, de Carlos Moreira (porque há dez anos não leio livro novo dele)

* Poética, de Ana Cristina Cesar (porque o booktrailer do livro é muito amor)

* Sétima do singular, de Diego Grando (porque adorei o livro anterior do moço, Desencantado Carrossel, e por causa desse poema)

  1. Ainda sei de cor o soneto 90.
  2. Foi emocionante vê-lo em tudo quanto é canto na minha primeira Flip.
  3. Quando me mudei para Curitiba, os livros dele, emprestados da Biblioteca Pública do Paraná, foram meus primeiros companheiros.
  4. Eu, filho do carbono e do amoníaco!
  5. Sofri quando um dos pontos positivos da minha mudança para Curitiba – finalmente conhecer o poeta – foi frustrado pela informação de que ele tinha morrido… em 1989! So unfair!
  6. Decerto não é por conta de ficar horas ruminando a leitura após cada poema, uma desculpa bastante corrente: “você precisa de tempo para a poesia assentar dentro de si, até entendê-la etc.”. Talvez eu fosse um leitor melhor se o fizesse, mas a questão é que não o faço. Eu a leio como prosa, como uma amiga bem definiu. Talvez por isso eu seja mais dado à falta de métrica e rimas, apreciando versos brancos e livres.
  7. Boatos que o povo andava enjoado de barba. Boatos que, talvez, brasileiro goste de poesia, sim.
  8. Alguns: As maçãs de antes, de Lila Maia; Rua da padaria, de Bruna Beber; Atrás das linhas inimigas de meu amor, de Leonard Cohen; Fábulas para adulto perder o sono, de Adriane Garcia.
  9. Tradução de Carlito Azevedo, um dos lindos que me emocionaram falando de Drummond na Flip de 2012.
  10. Já em 2014, li A solidão de Caronte, de Homero Gomes, que demanda um bom conhecimento de mitologia.
  11. Só agora percebi: é justo essa a página que a Lu Thomé sempre cita em suas colunas
  12. Nota de rodapé 2 de “Brevíssimas impressões sobre a canção que você adorou”.
  13. Sigo poucos: Angélica Freitas, Gabriel Pardal, Bruno Latorre, Ricardo Domeneck, Michel Melamed.
  14. Por mais que eu não goste de praticamente nada do Pedro Gabriel, sigo o perfil do Eu me chamo Antônio esperando pelas exceções à regra. (Essa é pros haters que não acreditam no meu otimismo.)