NINFOMANÍACA – PARTE 1
Difícil falar sobre o que é claramente uma obra incompleta. Dividir um filme em duas partes não é um procedimento inédito, mas algo como, digamos, Kill Bill: Vol. 1 tem uma longa sequência climática, seguida de um epílogo e um gancho para a segunda parte. Ninfomaníaca – Parte 1 não acaba: o filme simplesmente para. Apesar de isso acontecer imediatamente após uma fala bastante significativa, fechando um capítulo que até serve como uma espécie de clímax (aviso: eu não vou fazer piada com esse termo), é frustrantemente claro que acabamos de ver apenas a primeira metade de um filme muito longo. Assim sendo, boa parte das conclusões a seguir podem ser radicalmente reconfiguradas daqui a sabe-se lá quanto tempo a Parte 2 estreará.
Lars Von Trier é um fanfarrão. É impossível separar suas obras de sua persona pública, e ele sabe disso. É comum encontrar pessoas que acreditam que o diretor é uma espécie de fraude, e que seus filmes são em geral provocações vazias. Lars não parece fazer a mínima questão de combater essa percepção, pelo contrário, ele cada vez mais tem abraçado essa imagem. Quando o diretor anunciou que faria um filme “pornográfico” com atores famosos, até veículos que não dão a mínima para filmes “de arte” noticiaram o fato. A verdade é simples e transparente: polêmica chama atenção; controvérsia é marketing gratuito. Isso é especialmente verdadeiro quando a coisa envolve sexo, fenômeno que pode ser observado, por exemplo, na recepção de Azul é a cor mais quente.
Tudo isso foi explorado de forma brilhante na comercialização de Ninfomaníaca, através de teasers descontextualizados que faziam o filme parecer especialmente sórdido e uma série de posters hilários que parecem ter sido criados com o principal objetivo de provocar quem já estava propenso a ser provocado. Quem consegue enxergar um pouco abaixo da superfície e tem o conhecimento da posição do filme como última parte da “Trilogia da Depressão” (que inclui Anticristo e Melancolia), no entanto, já sabia o que fica claro logo no começo dessa primeira parte: Ninfomaníaca não é um filme pornográfico sobre ninfomania, do mesmo jeito que Anticristo não é um filme de terror sobre o anticristo e Melancolia não é um filme de ficção científica sobre o fim do mundo.
A narrativa segue duas linhas paralelas: Seligman (Stellan Skarsgård) encontra Joe (Charlotte Gainsboroug) desmaiada em um beco, após ter sido aparentemente espancada. Ele a leva para sua casa, onde ela começa a contar a história de sua ninfomania desde o começo, a fim de explicar como chegou até aquele ponto. Essas histórias são apresentados na forma de flashbacks (onde Joe é interpretada pela estreante Stacy Martin), em capítulos fechados com títulos em cartelas. Joe fala sobre a descoberta de sua sexualidade na infância, descreve sua relação com seu pai, narra uma pragmática perda de virgindidade com Jerôme (Shia Labeouf), um amante que ela parece fadada a reencontrar entre os diversos que tem durante sua vida, etc. Até aí, pode parecer que não há nada de muito revolucionário no filme.
A sinopse acima não chega perto de transmitir o jeito inspirado com que a história é contada, no entanto. O que faz da narrativa especial é o fato de Seligman constantemente interromper Joe, traçando paralelos entre as maneiras com que ela se relaciona com seus parceiros e os mais variados assuntos, como uma descrição bastante detalhada de técnicas de pescaria e o uso da sequência de Fibonacci em Bach, de forma que as relações entre os gêneros exploradas no filme ganham contornos filosóficos e analíticos. Ao mesmo tempo, Joe usa esses assuntos (e os objetos que vê na casa de Selig) para moldar sua narrativa, o que cria uma dinâmica complexa entre os dois personagens e abre espaço para que Von Trier utilize inúmeros artifícios formais para criar uma experiência sensorial rica e diversificada.
Praticamente toda digressão, por menor ou mais banal que seja, é acompanhada de alguma imagem. De uma forma ou de outra, estamos constantemente vendo o que é mencionado, como num documentário especialmente didático, o que cria um processo curiosamente poético e irônico. Isso não se limita a metáforas visuais – o filme também se utiliza da superimposição na tela de caracteres e símbolos em momentos importantes. Quando, por exemplo, Joe estaciona um carro com uma manobra perfeita numa vaga onde Jerôme não conseguia fazê-lo (emasculando-o no processo), os ângulos da baliza são sobrepostos ao plano em plongée absoluto. Como nos outros filmes da Trilogia da Depressão, há muito de Bergman e Tarkovski em Ninfomaníaca (a cartela do primeiro capítulo é um plano praticamente idêntico ao começo de Solaris), mas a constante inventividade visual lembra diretores como Alain Resnais e Peter Greenaway, especialmente no uso rítmico de split-screen no (fantástico) “último” capítulo.
Esses recursos, entre outras coisas, tornam o filme surpreendentemente engraçado. Na primeira metade, o humor negro chega em seu ápice no capítulo “Mrs. H,” que começa com Joe descrevendo a logística de manter dezenas de amantes (ela inventa um sistema onde utiliza um dado para decidir as respostas que dará ao telefone) e termina com Uma Thurman roubando a cena como a esposa abandonada quintessencial. Isso não impede que Lars dê uma guinada de tom radical logo em seguida, quando Joe encontra um livro de Poe na casa de Selig. A voz de Stellan Skarsgård lendo o trecho inicial de A queda da Casa de Usher serve como um augúrio fúnebre de um capítulo em preto-e-branco bastante depressivo que lida com a morte do pai de Joe (Christian Slater, relevante pela primeira vez desde o século passado).
Como em Anticristo, psicologia é uma grande parte da coisa toda. A sequência no tempo presente, que emoldura a história, pode (e deve) ser vista como uma longa sessão de terapia onde Charlotte Gainsboroug é a paciente. Ao contrário do que acontece em Anticristo, no entanto, o processo não é apresentado como algo nocivo. Seligman é quase o completo oposto do personagem de Willem Dafoe nesse sentido: ao invés de exercícios de eficiência duvidosa que fazem a paciente se embrenhar na própria dor, ele em geral ouve, colaborando de forma lúdica e ocasionalmente esclarecedora. Claro que esse é um dos elementos que pode dar uma guinada na segunda parte, mas, por enquanto, é quase como se o Lars tivesse finalmente encontrado um psicólogo que o entendesse e quisesse falar sobre isso.
De certa forma, os dois personagens parecem representar Lars Von Trier. Apesar de Joe estar contando a história, a forma como ela é contada só seria possível através da colaboração de ambos. É provável até que exista uma espécie de relação animus/anima rolando aí, mas esse é um caminho pelo qual eu não vou tentar me aventurar (leitores jungianos, considerem-se convidados a deixar comentários quando o filme estrear). Seja como for, Lars deixa claro que não está acima de rir de si mesmo: Joe se descreve como uma má pessoa que faz os outros sofrerem para seus próprios fins e Seligman é definido como um homem “feminino.” Há até uma referência hilária à recente polêmica com Hitler que a mídia ajudou todo mundo a entender errado: quando Joe ri do nome de Seligman, este diz que é um nome judeu, e conta que vem de uma família anti-zionista (que não é o mesmo que anti-semita, ele explica).
Há também uma possível camada metalinguística na relação entre os dois. Sob este ângulo, Joe seria o autor (antes de começar a história, ela adverte que esta será “longa e moral”) e Seligman, a plateia, interpretando as coisas a partir de suas próprias experiências e conhecimentos enquanto opina sobre o comportamento duvidoso dos personagens, censurando ou justificando conforme considera adequado. Em certo ponto ele inclusive interrompe a história para reclamar de uma suposta falta de verossimilhança, o que, além de inserir uma perspectiva de espectador, sugere a possibilidade de estarmos lidando com um narrador não-confiável. Resta esperar pela Parte 2 para saber se isso será explorado mais a fundo.
E aqui voltamos para o problema inicial. Tudo é “possível” ou “provável” e talvez eu já tenha me alongado demais com pouca informação, enxergando as coisas de forma diferente da que elas realmente são, como o peixe que acredita que uma isca artificial é na verdade um inseto se debatendo na água. Por enquanto, ficamos com a confirmação do que já era esperado: Ninfomaníaca obviamente não é um filme pornográfico. Apesar de ter seus trechos explícitos, o sexo não é mostrado de forma sensual em nenhum momento, sendo usado na história para explorar temas familiares à obra recente de Lars Von Trier. Se alguma coisa ficou clara nessa primeira parte é o fato de Joe ter sérios problemas emocionais, utilizando-se do sexo como uma ferramenta para lidar com um grande vazio interno. Quando ela diz “preencha todos os meus buracos, por favor” ela não está falando (apenas) em termos físicos.
Avaliação: **** de *****
único bom texto que li sobre o filme, que vi ontem. entendemos a mesma coisa e também, o filme é fantástico.
Olá Rodrigo,
Acabo de sair da sessão e minhas conclusões diferem muito das suas, expostas nesse texto. Concordo no ponto (primordial) e que trata-se da 1° parte de um obra dividida, devemos esperar a conclusão dessa história.
Quanto ao resto, deixa eu tecer alguns comentários: sobre a utilização de ferramentas visuais, Von Trier parece ter-se utilizado de uma ferramenta tão fácil e barata para dar um tom cult a essa obra que chega a surpreender tratar-de do mesmo autor de Maderley/Dogville. Essas ferramentas, como o 3 e o 5, números da primeira foda de Joe, são tão corriqueiros no Cinema que considerá-los saídas engenhosas parece apenas ovacionar um nome respeitado.
Quando as inferencias de Seligman, considerei algumas bem pontuais, seu personagem parece fazer, em alguns momentos, um bom bate-bola com a protagonista. Isso faz de Ninfomaniaca um filme, sobretudo, freudiano. A relação de ambos é sim de terapeuta-paciente, assim como de pai-e-filha e animus/anima. Psicologismos de Von Trier, já esperávamos por isso, nada de novo no front.
O que mais me incomodou foi ver uma história extremante entrecortada, insensível à proposta que abraça. Há uma narração em termos extremamente cartesianos e o evoluir de Joe é meramente enfadonho.
Restam momentos de engenho na cenas de Uma Thurman, concordo com você, e no capítulo final, mas essa primeira parte relevou apenas que, provavelmente, Von Trier poderia ter tirado muita gordura dessa obra e ter feito um filme menor – e melhor.
Eu não acho que coisas como o 3+5 tem alguma ambição de dar um “tom cult” (?) a nada, elas servem mais pra pontuar os momentos onde o Lars deixa a tese do filme mais transparente, i.e. o comportamento humano segue padrões mecânicos previsíveis, como peixes percorrendo um rio de acordo com as margens, uma composição clássica seguindo uma sequência matemática, ou mesmo personagens em uma narrativa agindo de acordo com as ideias do autor. Não entendi o que você quis dizer com “insensível à proposta que abraça,” eu acho que a proposta é justamente uma ótica analítica sobre coisas normalmente romantizadas. O filme me lembrou “Meu tio da América,” do Resnais. Não é tão cerebral, mas compartilha uma visão parecida das coisas.
P.S.: Acho que é 2+3, não 3+5. Ou não.
É 3+5 mesmo, Rodrigo.
Uma coisa que esqueci de comentar: achei ridículo ele se justificar no filme por sua boca grande e comentários preconceituosos. Aquela parte do anti-sionismo é muito patético.
Ainda não assisti o filme, mas ótimo texto! Você escreveu sobre Anticristo em algum lugar? Abraço.
Considerando-se que, nos termos Jungianos, e de forma simplista, Animus é a parte masculina dentro da mulher que se relaciona com o homem, e Anima é a parte feminina dentro dos homens q se relaciona com as mulheres, com certeza existe uma relação de animus X anima xD
Ambos originam-se na primeira relação q o individuo tem com o sexo oposto… Mas são termos Jungianos, da pra analisar sob muitas perspectivas esse filme…