A investigação do jornalista Lawrence Wright sobre a cientologia começou com um longo artigo para a revista americana New Yorker publicado em fevereiro de 2011. No texto, Wright expunha a decisão do diretor e roteirista Paul Haggis (de Crash e Menina de ouro) de abandonar o culto após 35 anos como filiado. O artigo trazia também um resumo dos antecedentes da igreja, com histórias chocantes de intolerância em relação a homossexuais, violência física contra seus altos executivos e tratamento quase escravista de menores de idade. Esse ponto de partida explosivo, reforçado por centenas de horas de entrevistas, acabou então se transformando no livro A prisão da fé.

Wright manteve o mesmo estilo empregado na New Yorker, estruturado em torno da história de algumas figuras-chave. O testemunho de Paul Haggis ainda aparece em destaque, assim como relatos sobre Tom Cruise, John Travolta e outros personagens menos midiáticos da cientologia, mas dois nomes assumem o primeiro plano: L. Ron Hubbard, o fundador; e David Miscavige, o sucessor e atual chefe da igreja.

Segundo a biografia oficial da cientologia, Hubbard seria uma combinação de cientista, filósofo e herói de pulp fiction. Ainda jovem, morando no Oeste Americano, teria se tornado irmão de sangue dos índios Blackfoot. Pouco depois, acompanhando o pai em viagens à Ásia, teria estudado com o último descendente dos magos reais da corte de Kublai Khan. Ao servir na Segunda Guerra, provaria seu valor sob fogo inimigo, sendo condecorado por seus feitos. Mais tarde, de volta aos Estados Unidos, faria descobertas sobre a mente humana que lhe permitiriam o acesso a faculdades sobrenaturais, como a autocura e o controle da matéria. Histórias muitas vezes inacreditáveis, mas que o próprio Hubbard ajudava a promover entre seus admiradores.

‘Ora, muita gente adoraria me ver aparecer no céu de Nova York só para impressionar o mundo. Mas, se eu fizesse isso, deixaria muitos em estado de choque. Não estou aqui para deixar ninguém em estado de choque.’

 

Ao longo do livro, Wright se esforça por desconstruir muitas dessas passagens mitológicas, denunciando o esforço da igreja em ocultar evidências históricas contrárias. No entanto, ainda que Hubbard nunca tenha pairado nos céus de Nova York, sua biografia continua tendo algo de fascinante. Participou de fato da Segunda Guerra, ainda que não tenha sido condecorado ou sequer atuado sob fogo. Depois comandou sua própria marinha – que daria origem à Sea Org, ordem que agrupa seus seguidores mais fervorosos. Organizou uma expedição ao Alasca, pela qual mereceu seu ingresso no Clube dos Exploradores. Na Califórnia, participou de cultos ao estilo de Aleister Crowley, permeados de orgias e rituais místicos. Escreveu ainda 1084 obras, recorde registrado no Guinness.

Depois de décadas de produção intensa, Hubbard acumulou um complexo corpus dogmático para a cientologia. Wright procurar explicar no livro alguns dos conceitos essenciais da doutrina, embora não se debruce sobre a matéria. Em linhas gerais, e invertendo completamente a ordem com que essas informações são passadas aos neófitos, a cientologia revelaria que os seres humanos possuem almas imortais, que em função de uma série de eventos, em especial a derrocada de Xenu, o imperador galáctico, há 75 milhões de anos, teriam sido aprisionadas num estado de ignorância e sofrimento. Somente a partir de um extenso processo de autodescoberta, feita com a ajuda dos auditores da igreja, seria possível a superação desse estágio.

A ideia de que nosso destino na Terra possa estar atrelado a um enredo de ficção científica soa obviamente absurda aos não iniciados. No entanto, como Wright tenta mostrar a partir de testemunhos de ex-cientologistas, dentro da igreja prevalece o mistério velado dos cultos. Para alcançar os níveis mais altos, que incluem os segredos a respeito da origem da humanidade, o neófito deve galgar uma série de degraus de aprendizado, mediante muitas horas de audição (geralmente pagas). Assim, quanto mais o iniciado se aprofunda na doutrina criada por Hubbard, maior o seu comprometimento emocional, intelectual e material, e menos cético ele se dispõe a ser.

A biografia de Hubbard oferece também muitos eventos que parecem ligados a práticas adotadas futuramente pelo culto. Num caso relatado no livro, do período em que Hubbard viveu em alto-mar com a Sea Org, um dos garotinhos mais travessos da tripulação, de apenas quatro anos, foi punido com dois dias no apertado depósito da corrente de âncora, sem cobertor nem permissão para ir ao banheiro (embora lhe dessem ao menos comida). Dessa experiência, entre outras, Hubbard parece ter formulado a crença de que o confinamento físico funcionaria como reabilitação para praticamente qualquer transgressão à disciplina da igreja (ou à sua autoridade). Assim, quando o FBI invadiu uma das instalações da organização em 1977, no subsolo de um hospital reformado, não surpreende que tenha encontrado aquela mesma cabine multiplicada por dezenas:

Encontraram uma coelheira de cubículos, cada um ocupado por meia dúzia de pessoas vestidas de macacão preto, com trapos imundos em volta dos braços para indicar sua condição degradada.

 

Hubbard morreu em 24 de janeiro de 1986. Cada vez mais isolado, passara os últimos três anos morando em um simples ônibus adaptado. Dentre os poucos membros da cientologia com quem ainda mantinha contato, parecia preferir o casal Pat e Annie Broeker como seus sucessores no comando da organização. O que se seguiu, no entanto, não deixa a desejar a nenhuma história de conspiração e golpe de estado. Utilizando-se de ameaças judiciais, um esquadrão de capangas e o apoio de alguns executivos da igreja, David Miscavige, então um jovem de 28 anos, conseguiu afastar os Broeker e assumir a liderança. Paul Broeker fugiu para o exterior e foi vigiado por detetives particulares pelos 24 anos seguintes.

Os testemunhos colhidos por Wright formam a imagem de Miscavige como um líder carismático e determinado, mas vaidoso, dominador e violento. Muitos relatos afirmam que chegaria a agredir fisicamente seus assessores ou submetê-los a rituais humilhantes. Num dos casos citados no livro, um executivo da igreja, após protestar contra a violência de Miscavige, teria sido espancado por dois de seus auxiliares e obrigado a limpar, com a língua, o chão de um banheiro.

Miscavige gosta de jogar bilhar ou videogames em sua sala de descanso. Tem uma câmara de bronzeamento e uma sala de ginástica luxuosa que pouca gente, além de Cruise, tem permissão para usar. Embora de baixa estatura, Miscavige emana força física. Gosta de usar camisetas justas que mostram os bíceps musculosos. Coleciona armas, tem pelo menos seis motocicletas e vários automóveis, inclusive um GMC Safari blindado com vidros à prova de balas e televisão por satélite, além de um Saleen Mustang turbinado que Cruise lhe deu para fazer par com o seu.

 

Ainda assim, e apesar dos frequentes questionamentos e escândalos na mídia envolvendo a cientologia, Miscavige conduziu a igreja a algumas vitórias fundamentais, como o reconhecimento da sua condição de religião perante o fisco americano. Foi responsável também por recuperar parcialmente o prestígio da igreja em Hollywood, graças à associação com nomes importantes como Paul Haggis e Tom Cruise. Segundo Wright, teriam existido até mesmo planos para converter Steven Spielberg.

Desde a década de 50, quando foi fundada oficialmente em Los Angeles, a cientologia se esforçou para atrair artistas para as suas fileiras, como foram os casos de John Travolta, Kirstie Alley e Juliette Lewis. Como mostra Wright, havia um esforço programado para atrair celebridades:

A cientologia prometia a esses neófitos o ingresso na fechada comunidade das celebridades. A igreja afirmava possuir um método para o progresso; igualmente sedutora era a afirmação velada de que existia uma rede de cientologistas nas altas esferas da indústria do entretenimento, ansiosa para dar um empurrãozinho aos seus correligionários – afirmação que nunca teve muito fundamento mas que também não era uma total inverdade. A cientologia era uma pequena mas crescente subcultura nos estúdios de Hollywood.

 

Wright revela também que para seduzir esses artistas, especialmente as grandes estrelas, a igreja mobiliza todos os seus recursos e chega a se envolver profundamente em suas vidas. Quando Miscavige soube que Cruise e Nicole Kidman tinham a fantasia de correrem juntos por um prado de flores silvestres, ordenou aos membros da Sea Org que cultivassem um trecho de um deserto. Mais tarde, após a separação do casal, Miscavige parece ter comandado a seleção de uma nova companheira para Cruise – que terminaria com a escolha de Katie Holmes – quase como um reality show.

Embora tudo isso leve a crer que as celebridades tenham uma relação mais simbiótica com o culto do que inicialmente imaginado, os exemplos citados no livro mostram que a maior parte das pessoas chega à cientologia numa busca legítima por autoconhecimento e espiritualidade. Como disse Haggis ao renunciar à igreja: “A grande maioria dos cientologistas que conheço são boas pessoas que estão genuinamente interessadas em melhorar as condições neste planeta e em ajudar os outros. Devo crer que, se soubessem o que sei agora, também se sentiriam horrorizados.”

O grande mérito da obra de Wright é sua extensa pesquisa de testemunhos e documentos ligados à cientologia, referenciados em centenas de notas de fim de texto. Como um todo, o livro funciona melhor como um manancial de aspectos reais do universo da crença do que uma reflexão de fato sobre “a prisão da fé”. Não se deve esperar dele uma discussão conceitual, do tipo que permitiria distinguir entre a fé propriamente dita e a pressão social de uma comunidade organizada em torno da religião. Sua faceta investigativa, no entanto, é exemplar, uma denúncia inquestionável de que há algo realmente perturbador por trás dos segredos que envolvem a cientologia.