Quando eu pronuncio a palavra “ghostwriter” é comum ver a mesma reação nas pessoas. Claro que algumas não entendem (“gô o quê?”). Mas a grande maioria assume um olhar distante. Eu sei para onde a mente delas vai: ambientes luxuosos, taças de champanhe, reuniões à beira da piscina ou ao pé da montanha, gargalhadas com a cabeça reclinada e a chave do Porsche no bolso.

A mente delas viaja para lugares como os de O escritor fantasma, de Roman Polanski. Ewan McGregor mexendo em arquivos, desvendando mistérios, voando em jatinhos particulares, bebendo champanhe e fumando charutos cubanos. Tudo muito longe da realidade de um ghostwriter (pelo menos a minha realidade como escritora fantasma). Eu, do lado de cá, dispenso o “glamour”, embora sinta falta de um Cohiba de vez em quando. Em todo o caso, a minha atividade rende boas histórias de making of. E, graças a Deus, está passando longe do que acontece com a personagem desse filme… aquelas folhas todas voando no meio da rua… credo.

Pergunta a minha vizinha do apartamento da frente, que sempre teve curiosidade de saber com o que eu trabalhava dentro de casa: Mas, afinal, o que faz um ghostwriter? Fácil: escrevo livros para outras pessoas. Óbvio: meu nome não é divulgado na capa do livro. E faz parte: não fico chateada com isso. É o meu trabalho, e cada vez mais jornalistas e profissionais da palavra têm investido na área. Não é meu oficio exclusivo. Faço assessoria de imprensa para o mercado editorial, cuido de algumas demandas de comunicação da Não Editora, brinco com o Lucas, fico atenta para ele não saltar do sofá direto no chão, e escrevo livros.

Pergunta o Lucas intrigado, por sempre ver a mamãe por perto: Mas quando é que você escreve? Atualmente, das 23h às 3h, depois que pequeno dorme, e o horário que consigo concentração máxima.

Mas fantasmas não escrevem somente livros. Fazem artigos e discursos para políticos e empresários. E outras atividades ilícitas (como monografias, por exemplo – feio, muito feio). Para saber mais: http://pt.wikipedia.org/wiki/Ghost-writer. No Canadá, a atuação do ghostwriter é reconhecida e apoiada por entidades. No Brasil, ainda é cada fantasminha por si. No entanto, por aqui temos um livro bem elogiado que fala sobre o lado maldito da profissão: Budapeste, de Chico Buarque.

Eu não planejei ser ghostwriter. Recebi um convite e um projeto foi puxando o outro. Já escrevi quatro livros. Mas só falo deles para amigos muito íntimos. Esta é uma atividade que não permite a divulgação do portfólio. Conquistar novos clientes depende muito da indicação de clientes anteriores. Além disso, tenho algumas regras: não escrevo livros de ficção. Só livros de não ficção (biografias, autobiografias, autoajuda, técnicos) e onde o “autor” saiba o que deseja “escrever” e como quer “escrever”. Muitas pessoas não têm tempo para escrever um livro, ou não sabem como começar ou terminar. Mas têm uma ideia bem formada do conteúdo e precisam de alguém que coloque a mão na massa.

Pergunta o meu pai, preocupado com tudo isso: Dá dinheiro? Claro. Condição essencial é ser bem remunerado, e saber planejar bem o cronograma para evitar trabalhar meses adicionais no livro. Saber quanto cobrar por um trabalho de ghostwriter é uma equação com diversas variantes. O preço está vinculado ao volume de texto e à pesquisa, além do tempo que levará para ser executado. O prazo necessário para cada trabalho depende muito, pois pode durar três meses, seis meses, um ano.

Pergunta meu marido Elio, querendo descobrir os atalhos: E existe algum macete ou artimanha para se dar bem com isso? Não sei se é segredo ou artimanha, mas eu tento, na medida do possível, emular a voz do “autor” e manter distância da minha própria voz. Fica mais difícil e mais desafiador, quase um trabalho literário. Aliás, a minha pós-graduação em jornalismo literário me ajuda nas entrevistas e na redação final. Além disso, outros ingredientes necessários são disciplina (para manter o ritmo de produção), organização (para transitar pelos diversos materiais ao compor o texto final) e paciência (para saber que um livro de 150 ou 300 páginas não será feito de um dia para o outro ou na semana antes do deadline chegar).

O “glamour” fica longe das minhas madrugadas produtivas regadas a café com leite. E eu acabo bem próxima das pessoas que me contratam. Meu primeiro cliente achou que eu trabalharia como conselheira dele para todo o sempre. Ele vivia uma situação profissional particular na época e acabou me pedindo muitos conselhos. Minha segunda cliente me ligava chorando, dizendo que estava deprimida e que eu a entenderia. No fim das contas, fantasma é um pouco psicólogo também. Todo o bom ghostwriter é, antes de tudo, um bom ouvinte. E quem não gosta de ter alguém que ouça as histórias que temos para contar? Mesmo que seja alguém que, oficialmente, não existe.

 

Na Página 28 de Budapeste, de Chico Buarque:

 

“O alemão não tinha cabelos, nem sombra de barba, nem sobrancelhas, era perfeitamente glabro. Sem ser velho, tinha a pele do rosto ressequida, provável sequela do sol do Rio, sete verões com a pele a se soltar da pele a se soltar da pele até chegar a essa, uma pele com um quê de papel, uma casca provisória que foi ficando. Aprumava-se na cadeira assim que eu acionava o gravador, e falava um português exótico porém fluente, interrompido apenas para eu trocar a fita, ou quando o Álvaro entrava no quartinho. Entrava sem bater o Álvaro, sem motivo algum, saía, voltava com um contrato para o alemão rubricar, saía, deixava a porta aberta. Já não havia alemão, e ele continuava a entrar a qualquer hora, falava qualquer coisa e espichava o olho para o meu computador, me forçando a cobrir a tela com as mãos, para proteger os meus rascunhos. Só à tardinha, quando ele e seus rapazes deixavam a agência, eu sentia confiança para tocar o trabalho.”