Foi há aproximadamente dez anos, nos idos de 2004, que ouvi pela primeira vez o nome de Eduardo Coutinho. Meu irmão tinha ingressado há pouco na faculdade de Radio e TV e um de seus professores, o Alfredo, sugeriu uma resenha sobre Edifício Master (2002), um dos documentários mais recentes do diretor. Acabei por assistir ao filme apenas dois anos depois, agora quando eu começava minha trajetória acadêmica na UNICAMP, como parte integrante de uma disciplina de antropologia fílmica.

Pouco tempo depois, provavelmente no ano seguinte a esse, decidi voltar minha atenção quase que exclusivamente ao estudo do cinema documentário. Era tempo, portanto, de desbravar um universo ainda pouco conhecido, adquirir repertório e tentar entender – ainda tento – o universo, composto de infinitos meandros, que compreende o termo “documentário”. Para isso, nada mais natural que percorresse a obra daqueles que, pela História, tornaram-se paradigmas do assunto: Flaherty, Grierson, Ivens, Vertov, Lorentz, Rouch, Perrault, Godard, Marker, os Maysles, Wiseman, Drew, Leacock, Pennebaker, Minh-ha, Moore… americanos, britânicos, soviéticos, franceses, canadenses.

Mas, e no Brasil? Haveria aquele cujo nome seria automaticamente lembrado como documentarista por excelência? Nesse momento de minha guinada para o estudo do documentário o nome de Eduardo Coutinho assumia um posto inabalável e inalcançável: era ele, cuja dedicação de algumas décadas à cultura do Cinema Documentário projetava-o como sendo um autor, o autor brasileiro de documentários. A cronologia do interesse de Coutinho pelo documentário subverteu uma ordem ainda vigente no cinema brasileiro, a de que o documentário apresenta-se como uma espécie de trampolim para o desenvolvimento posterior do cinema de ficção, dominantemente visto como o Cinema com “C” maiúsculo. O cinema de ficção ocupou o início da carreira do diretor e os filmes, ainda que demonstrem certamente qualidade de roteiro e direção, não foram os responsáveis por inscrever seu nome na História.

Coutinho inicia sua trajetória como documentarista participando do projeto do Globo Repórter, na década de 1970, junto a nomes como Paulo Gil Soares e Walter Lima Jr. Os filmes do Globo Repórter representam um momento ímpar na televisão brasileira, almejavam transpor a linguagem cinematográfica a uma veiculação televisiva em rede nacional1. Havia uma distinção muito clara, no momento, entre núcleos de reportagem e o núcleo dos cineastas do Globo Repórter. Coutinho dirigiu e exibiu uma quantidade significativa de documentários durante sua passagem pelo GR. Seis Dias em Ouricuri (1976) e Teodorico, o Imperador do Sertão (1978), dois dos mais conhecidos, são facilmente integrados à filmografia de Coutinho como portadores de características que evocam o interesse do diretor por questões propriamente relativas à representação documentária em voga na época. Seis Dias em Ouricuri revela a preocupação do diretor em estabelecer um modus operandi e fazê-lo a força propulsora da narrativa (protótipo do que hoje associamos a algo como o “Dispositivo” no Cinema Documentário), no caso, a regra era passar seis dias na cidade (no sertão pernambucano), entrevistando e ouvindo seus moradores falarem a respeito das difíceis condições de subsistência na região, como, dominantemente, a escassez de alimentos. Já Teodorico, retrato do coronelismo ainda vigente no nordeste do país, foi estabelecido na forma de uma sutil crítica social, desenvolvida sobretudo formalmente: ao pouco intervir como entrevistador, ou como narrador, Coutinho deixa que o personagem exponha, ele próprio, a opressora relação de poder com seus subalternos. Levando a cabo questões relativas à representação do outro e da transparência do cineasta na narrativa, Coutinho afirmava já no momento, em rede nacional, que Documentário é coisa séria.

Fernanda Torres em Jogo de Cena.
Fernanda Torres em Jogo de Cena.

É em 1984, entretanto, que Coutinho dá um salto maior em direção à sua devida importância. O lançamento de Cabra Marcado para Morrer é um divisor de águas na história do documentarismo brasileiro. Partindo de um filme que não chegou a ser – o diretor afirma em entrevista, na década de 1970, que não haveria salvação para o filme que começou a ser rodado na década anterior, cujo material fora quase totalmente apreendido na conjuntura do Golpe de 1964 –, Coutinho nos trouxe finalmente a história de Elizabeth Teixeira e de seu marido, João Pedro Teixeira. A incorporação de uma filmagem supostamente fracassada e a personalização da narração através da voz do próprio diretor – que rememora a cronologia dos eventos vividos na filmagem do Cabra original – são os principais propositores de uma narrativa documentária densa, reflexiva e desafiadora, em moldes pouco vistos no Brasil de então. Falar de si, das próprias experiências, firmar-se e frisar-se como documentarista-personagem que responde pelos seus próprios atos em frente à câmera.

Santa Marta – Duas Semanas no Morro (1987) demonstrou nova guinada do diretor em direção ao desenvolvimento de uma metodologia, essa sim, que seria aquela pela qual o diretor se tornaria mais reconhecido e referenciado. Um Coutinho entrevistador – ou, mais propriamente, interlocutor, psicólogo (?), talvez um amigo para conversar. Nas conversas que travava diante da câmera – majoritariamente escutando, sabendo exatamente quando, o quê e como falar – Coutinho revelou verdadeiros personagens nas pessoas “comuns”, nós e nossos vizinhos, que outrora dificilmente seriam considerados como forças propulsoras para narrativas cinematográficas. Como a Marceline de Jean Rouch ou o Paul Brennan dos irmãos Maysles, como esquecer a performance de My Way realizada pelo Sr. Henrique em Edifício Master? E assim foi, filme após filme, Coutinho mostrando-nos a singularidade de cada um de seus personagens em obras como Santo Forte (1999), Babilônia 2000 (2000), Edifício Master, Peões (2004), O Fim e o Princípio (2005).

Já, nesse momento, o maior documentarista brasileiro da História, Coutinho demonstrou força para questionar tudo aquilo que construiu nas últimas décadas. Em Jogo de Cena (2007), Coutinho lançou-nos o questionamento de que o tudo também poderia ser o nada: relativizou e desconstruiu sua própria metodologia de filmagem e, assim o fazendo, desafiou mesmo a ontologia do Cinema Documentário. Grosso modo, desafiou um conceito geral de que aquilo que é apresentado em uma narrativa documentária o é feito para que seja acreditado (crido). Na narrativa ímpar de Jogo de Cena, Coutinho lembra-nos de desconfiar do jogo representativo, mesmo nos mais transparentes relatos documentários. Esse momento de sua carreira, o mais experimental de todos, estendeu-se ainda pelo difícil Moscou (2009, experimento em relação à representação teatral) e Um Dia na Vida (2010, apenas exibido em mostras de cinema, tratando-se de uma colagem de programas televisivos veiculados no espaço de um dia). Houve tempo, ainda, para um retorno à metodologia pela qual tornou-se conhecido no longa As Canções (2011), explorando a musicalidade – aspecto também predileto do diretor –, através de conversas permeadas pela interpretação de canções importantes para a vida de seus personagens, novamente, nós e nossos vizinhos.

Ao que consta, esse aspecto musical seria um ponto-forte da(s) próxima(s) obra(s) do diretor. Mas isso, acho que nunca saberemos. A notícia de sua morte trágica veio como uma bomba para mim e para toda a comunidade que acompanhava de perto seu trabalho. Fico triste em pensar que, apesar dos já 80 anos, Coutinho mostrava ainda muito vigor e muita lenha para queimar, para fomentar os debates sobre Cinema Documentário que eram certamente renovados a cada filme que ele lançava. O que faz de um diretor um autor é a expectativa que existe em torno de cada produção, cada ideia, cada lançamento… não importava muito “sobre o que” tratavam os filmes… ia-se ao Cinema para prestigiar “o filme novo do Coutinho”. Agora não tem mais filme novo do Coutinho. Certamente órfãos, resta-nos apenas o velho consolo de que, ao menos, houve tempo suficiente para que toda a dedicação do diretor fosse transposta à tela e que seus filmes estão aí, devidamente eternizados. Eternos aplausos a você, Eduardo Coutinho, e carreguemos o legado adiante…

  1. Os artigos recentes do Prof. Dr. Gilberto Alexandre Sobrinho (UNICAMP) dedicam-se à análise de filmes e cineastas que compunham o projeto do Globo Repórter. Aqui, um trabalho do autor sobre Teodorico, Imperador do Sertão (1978), de Eduardo Coutinho, que fez parte do corpus do GR.